terça-feira, 24 de maio de 2011

Corda bamba

"Porque é que os sacanas têm tanta sorte?", diz volta e meia o meu pai.
E tu, Carlos, és um grande sacana. És daquelas pessoas que tanto repele e se despreza como atrai e cativa. Por um lado, abusas da generosidade das mulheres e abalas a confiança dos homens. Por outro, nenhuma mulher te resiste e todo o homem deseja ser como tu, ainda que secreta ou esporadicamente.
Não leves a mal este meu desabafo. És meu amigo e sou o primeiro a defender-te à mínima ofensa. Podes ter muitos defeitos, mas tens ainda mais qualidades. A maior delas é seres amigo do teu amigo, algo que me tens sempre demonstrado. Ainda assim, não é justo, Carlos.
Não é justo que tenhas as mulheres que queres e as uses só para satisfazer o teu ego e depois larga-las sem mais. Enquanto eu, que não faço mal a ninguém, sou constantemente ignorado pelo sexo oposto. Nem vale a pena aproveitar as tuas sobras: depois de ti, elas tornam-se gatas escaldadas com medo que eu seja mais água fria.
Não é justo que a sorte típica dos sacanas te acompanhe a cada passo, e o azar me persiga assim que me atrevo a pisar o risco. Não é justo que gajos como tu se safem airosamente de tudo e outros como eu sejam acusados de cabrãozice e punidos como tal.
Claro que por vezes tenho vontade de comprar o que desdenho. Tu sabes bem que toda a minha crítica tem sempre uma pontinha de inveja. Também eu gostava de saber como é seres tu. Ter um coração cego a rogos femininos e esvair-me em corpos apetecidos num momento e obsoletos no momento seguinte. Acreditar que se pode passar por cima de todas as regras e leis, nunca temendo o possível castigo ou nunca duvidando que tudo não correrá pelo melhor.
Tu és um equilibrista na corda bamba, como aqueles do circo. E eu sou daqueles que te vêem lá debaixo, espantados por ver alguém caminhar no fino fio como quem tem os pés assentes no chão. Mesmo se o mínimo deslize signifique um queda fatal. Já que tu não tens medo de nada, temo eu por ti. Que um dia caias da corda e te estateles no chão sem apelo nem agravo.
Ou que uma noite, quando estiveres sozinho e ninguém te vê, uma solidão profunda e uma lança de culpa te dilacere o corpo e a alma e sofras por seres que és.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Outra chance

Eu sou daqueles acredita no amor para toda a vida. E acreditei ainda mais assim que te conheci. Parecia tudo um conto de fadas: a minha mão na tua, as alianças a deslizarem pelos nossos dedos, os nossos corpos que não pareciam saciar-se um do outro, o nascimento da nossa filha. Acreditei que por entre contratempos, espinhos e precalços, o nosso caminho seria longo. Estaríamos lado a lado, ver a Vanessa crescer, fazer-se mulher, ver nascer netos, ver os nossos rostos enrugados e nossos cabelos grisalhos com a serenidade que preencheu toda uma vida.
Mas o nosso amor estava destinado a ser breve. Um cancro silencioso e cruel comeu-te a vida aos trinta e sete anos, deixando-me sozinho e apunhalado pelo destino e uma doce menina dez anos sem mãe.
Se de dia, me mostrava forte e seguia a vida, entre trabalho e cuidar da Vanessa, à noite desesperava-me o vazio que deixaste na nossa cama. A menina, que em muitas coisas sai a mim, também parecia lidar bem com tudo à luz do diz e via-a a brincar e a rir. Mas muitas noites, era atormentada por pesadelos em que eu também morria ou ela estava sozinha no mundo. E acabava por se enfiar na minha cama para que eu a acalmasse.
Estes quatro anos foram muito solitários para nós, sem ti meu amor. Mas mesmo se a dor não diminui, o tempo foi passando. A Vanessa tem agora catorze anos, já começou a ganhar as primeiras formas de mulher. Onde quer que estejas, deves saber que ela está uma jovenzinha bonita, esperta e muito, muito corajosa. Não tem problemas nenhum em dizer o que pensa, por muito que isso não agrade a quem ouve.
Eu ainda te amo muito, Clara, e nunca deixarei de te amar. Mas o meu amor por ti está onde tu estás, além das estrelas e das coisas visíveis. Cá na terra, estou a amar de novo. Não é um amor absoluto e idílico como o nosso. É cheio de espinhos e obstáculos, lágrimas e inseguranças, e apesar de tudo, sorrisos. Porque ambos já sofremos por amor, ela ainda mais que eu, ao experimentar o abandono e a rejeição do marido.
Como é óbvio, quer a Vanessa, quer os filhos dela, torceram o nariz ao início. À Vanessa, custou-lhe ver outra mulher lentamente a ocupar alguns lugares que ela sempre teve como teus, e o facto da Isabel ser mãe do rapaz da turma por quem ela tem um fraquinho não ajudou. E os filhos dela alimentavam, apesar das evidências, uma ténue e legítima esperança de que os pais voltassem a ficar juntos. Mas tanto ela como eles, vão aos poucos aceitando, vêm que nos sentimos muito bem um com o outro, que recuperámos alguns risos e expressões felizes que há muito eles não viam e vão percebendo que a vida vai traçando outros rumos que seguem por outros meandros.
Esta noite, a Isabel voltou a sentir-se a mulher que é uma mulher atraente e digna de ser amada. Eu voltei a descobrir como é inventar o amor num corpo de mulher. Que para além de pai e viúvo, sou homem e humano. A vida deu-me esta chance e não posso deixar de aproveitá-la.  

quarta-feira, 18 de maio de 2011

És tão bonita

Tu dizes que eu sou bonita. E eu aqui, que não quero acreditar, quando os teus olhos cor de avelã são tão sinceros.
Desde que o Ricardo andava com outras, ou antes, quando deixei de ser a cega que não queria ver e reconheci que há muito não era a única mulher na vida dele, que de certa forma deixei o meu corpo hibernar. Os desejos que sentia pelo sexo masculino, em especial por ele, ficaram como encerrados a cadeado. Imaginava-o ao lado daqueles mulheres mais novas e atraentes e convencia-me que eu já não era atraente. Nem para ele nem para ninguém. É por isso que o meu cérebro não quer acreditar quando tu dizes que sou linda.
E ainda assim, dou por mim a ansiar por ti, pelo teu corpo, pelo carinho que estás disposto a oferecer-me. Quem diria que naquele dia chuvoso de Janeiro, eu me iria cruzar contigo e a vida tal como a conhecia iria mudar. Eu tinha ido com o Bruno buscar o boletim de notas. Tu acabavas de sair com a tua filha do gabinete da directora de turma. E sem saber como, o nosso cruzar de olhares ficou na memória.
Mais tarde, numa reunião de pais, a primeira conversa. Os nossos filhos são da mesma turma. Você é o pai da Vanessa. E você é a mãe do Bruno. Eles parecem ser muito amigos. É segredo, não diga a ninguém, mas a minha filha parece ter um fraquinho pelo seu rapaz. Ai que engraçado, estas idades, sabe como é. Eu chamo-me Fernando. O meu nome é Isabel. E por aí fora.
Meses depois, eis-me aqui no sofá da tua sala. Beijas-me, dizes que sou bonita. Uma parte de mim não quer acreditar, não pode ser, é como se já não tivesse arranjo. Mas por outro lado, nunca estive estragada e quero-me entregar, quero muito amar-te. Como já te amo.
Também sofreste muito, perdeste a tua mulher, a mãe da tua filha. Mas pelo menos soubeste que ela te amava até ao último segundo da sua vida. Eu, por outro lado, vi o homem que amava a rejeitar-me, subtil mas gradualmente. Aquele que dizia que era louco por mim, que dizia que nunca tinha conhecido uma mulher como eu, que me jurou amar e ser fiel, de repente se desinteressou. Rejeitava o meu beijo, enrolava-se com a roupa da cama para que eu não o tocasse, circulava pela noite em busca de aventuras mal disfarçadas. E com a sua rejeição, a minha confiança e a minha auto-estima também entraram numa lenta erosão.
Os homens sempre têm mais facilidade em ver o copo meio cheio e o sol depois da chuva, enquanto nós mulheres, vá-se lá saber porquê, encontramos um estranho conforto na secura e no lamento. Tu não pões rédeas ao teu coração e eu não consigo soltar o medo que há dentro do meu. Embora já te ame.
Com os miúdos fora, sozinhos na tua casa, sentados aqui no sofá, beijas-me os lábios. Dizes que sou bonita.
Sei onde esta noite vai dar. Sê um pouco mais paciente. Tudo farei para calar as vozes da dúvida e vou acreditar nos teus olhos avelã que me dizem que eu sou bonita. 

domingo, 8 de maio de 2011

Acto de adultos

Não devia ir contigo à farmácia, pois se foste crescidinha para fazeres o que fizeste, também terás de o ser agora. Mas eu irei contigo, quanto mais não seja por me sentir um pouco culpada. Mas quem me mandou apresentar-te o meu primo Rafael, sabendo a besta que ele é?
Vi-te toda entusiasmada com ele e a teu pedido, feita parva, eu apresentei-vos um ao outro. Foi o que bastou para ele começar a pensar em saltar-te em cima. E pronto, entornou-se o caldo e quem tombou a panela fui eu. Tal como outras antes de ti, não descansou enquanto não sacou o que queria de ti. E lá foste na sua lábia apurada e na sua carinha de santo caído do ceú aos trambolhões. Mal conseguiu o queria de ti, despachou-te em três tempos. Desculpa dizer-te isto, sendo tu minha amiga, mas assim que vi o caso mal parado, eu sabia que não tinhas esperteza para saíres da armadilha.
Ainda não te disse isto, mas sei de pelo menos uma rapariga com quem ele andou e veio a abortar, e não me admirava se não fosse a única. Aposto como o velhaco convcenceu-te que não havia perigo nenhum, que não era preciso usar protecção, com alguma desculpa esfarrapada. Ou então foste tu que pensaste, que só por uma vez não te acontecia nada, embora estejas careca de saber que isso não podia ser mais falso. Apesar de toda a informação que há na escola, na TV, nas revistas, muitos continuam a pensar como tu e ele. Por essas e por outras que eu quero manter-me virgem. Não digo até casar, mas até ter a idade, o juízo e a responsabilidade que são necessários.
Depois da última aula, vamos a uma farmácia, de preferência longe dos nossos bairros. Se der positivo, das duas uma: ou vais abortar não sei aonde e corres os riscos que tu sabes, ou vais se obrigada a ser mãe antes do meu tempo, e não contes com qualquer ajuda do desgraçado do meu primo. Se fosse a ti, rezava para que o teste dê negativo. Se assim o for, espero que deixes de ser ingénua e ganhes o juízo que te faltou. É que o sexo é um acto de adultos (coisa que nem tu, nem ele, nem eu somos) e para o fazer é preciso agir como tal.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Balada das 6 e meia da manhã

A música que explodia das colunas deu lugar à calmaria exterior e ao tímido chilreio das aves madrugadoras. As luzes intermitentes e o lasers coloridos perderam-se na retina, e o escuro da noite começa a ter os primeiros rasgos de um sol por nascer. A hora do lobo, onde não há fronteira entre o dia e a noite.
Mal abriram os portões da estação de Metro, nós, como os outros animais temporariamente noctívagos, deslizámos cartões e descemos as escadas rolantes, onde já esperavam as carruagens. Tal como lá fora, um relativo silêncio embalava o desfiar dos minutos. Como se o encanto fosse quebrado, caso alguém falasse alto.
Lá estávamos nós, os mesmos de sempre. Exaustos mas mantendo o sorriso da noite. Assim que nos sentámos na carruagem e o Metro iniciou a primeira viagem do dia, quase todos cederam ao apelo pesado das pálpebras e seguiu viagem de olhos fechados. Só eu mantive os olhos abertos, fitando absortamente a sucessão de túneis escuros e luzes difusas das estações. Cada um de nós foi saindo na estação mais conveniente. Quando chegou à minha vez, a madrugada já se anunciava lentamente num rastilho de sol.
Ao fechar as persianas e apagar todas as luzes do meu quarto, tive a sensação que tinha trocado as voltas ao tempo. Como se vivesse num universo paralelo, onde o acordar da noite vem num sopro de vida e a luz do dia indica o caminho para encostar a cabeça e procurar a euforia do sono.