quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Gosto do Natal

Gosto do Natal, até das pirosices.
Gosto de tudo que é previsível de acontecer Natal
e gosto de acreditar que mesmo assim vai acontecer alguma boa surpresa.

Gosto dos barretes de Pai Natal, das mesmas luzes de Natal a iluminar as ruas e das árvores de Natal, 
até das mais escanifobéticas e incipientes
e dos presépios em movimento.
Gosto dos postais e dos e-mails e as imagenzinhas de Boas Festas no Facebook.

Gosto dos Ferrero Rocher, Mon Cheri, Merci e After Eight
do cheiro a óleo na cozinha
do açúcar e da canela generosamente polvilhados nos doces fritos
dos sortidos de bolachas da Cuétara e da Triunfo
do azeite a embeber o bacalhau, as batatas e o ovo cozido.

Gosto do Last Christmas, Do They Know It's Christmas, All I Want For Christmas Is You,
do Shane McGowan a rosnar o Fairytale Of New York,
do A Todos Um Bom Natal e do Petersburger Schlittenfahrt.

Gosto do "Natal dos Hospitais", dos indultos da Presidência da República, das maratonas de filmes na TV.
Gosto dos "Sozinho em Casa" 1 e 2, da "Música No Coração" e "Do Céu Caíu Uma Estrela",
da mensagem do Cardeal Patriarca.

Gosto das lojas atafulhadas de gente, do papel colorido, das fitas douradas.
Gosto da Leopoldina e da Popota.
Gosto das colectâneas de música NOW, dos álbuns best of
dos novos tablets e smartphones,
dos perfumes Givenchy, Lancôme, Cacharel, Paco Rabanne
das caixas do Old Spice, dos jogos da Wii e das Playstations
das promoções "pague um DVD e leve dois"
dos livros best seller, das revistas de previsões astrológicas e das agendas novinhas em folha
dos gorros para os bebés, das luvas para as mães, dos cachecóis para os pais
dos packs de três cuecas e de cinco pares de peúgas.

Gosto de recordar os meus Natais de miúdo
a família reunida em casa da Avó
a roda de dentada de madeira para cortar a massa dos coscorões
as overdoses de anúncios a brinquedos aos sábados de manhã
os artistas pimba do Natal dos Hospitais que não eram tão pimba como os de hoje
as árvores com algodão a imitar foleiramente a neve
o alarve do avô a comer chocolates das Fantasias de Natal
o coelhinho que foi com o Pai Natal e o palhaço no comboio ao circo
do papel de embrulho feito em pedaços 
os Ministars e os Onda Choc a cantar na TV
as festas de Natal da escola

Gosto de saber que eu cresci
e que para mim o significado simbólico do Natal ultrapassa largamente o significado material
que a minha alegria está naquilo que dou
que me interessa quase nada aquilo que possa receber (quase...)

Gosto de pensar que todo os stresses e chatices desta quadra valem a pena.
Gosto de pensar que existe magia e boa vontade debaixo do cinismo.
Gosto de ainda gostar do Natal e de acreditar que gostarei sempre.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

O Silêncio é de Ouro

Ângelo, seu filho da mãe. Morreste assim de repente, logo tu que tinhas uma saúde de ferro, apesar de te queixares de dores que só existiam na tua cabeça e de teres "é tomar um comprimido" como resposta a todas as maleitas que tu e eu tínhamos. O certo é que nunca faltavas à hidroginástica e às caminhadas e estava certo que eu ia primeiro que tu. Mas o certo é que anteontem, acordei e o teu corpo na cama ao lado estava frio e sem vida.
E agora deixas-me aqui e estou sozinho outra vez. Já não me bastava perder há três anos a minha Adelina com quem estive casado quarenta e seis anos (mais sete de namoro) numa trombose e ter os meus três filhos longe, um na Alemanha, um na Suíça e outro em Lisboa, mas sempre tão ocupado entre o trabalho e a família dele que se vem cá acima uma vez por mês já é muito. Mas não reclamo, porque este lar é caríssimo e custa muito a cada um deles, já que a minha reforma pouco ajuda, e pelo menos sempre telefonam regularmente e tiveram a preocupação de procurar um sítio em condições em vez de me espetarem num pardieiro qualquer, como muita gente que eu conheço. Ainda assim, maldita a hora em que me atribuíram como teu colega de quarto. E sobretudo, maldita a hora em que te enfiaste na minha cama e me fizeste coisas que não são para se dizer. 

Nem sei bem porque é que eu deixei. Se calhar foi saudades da Adelina, quase cinquenta anos a partilhar uma cama, por entre tempos mais prósperos e outros em que tínhamos pouco mais do que um ao outro. Décadas em que nos amámos, primeiro com a ânsia de jovens, depois com a solenidade de adultos e por fim com a ternura de velhos. Creio que sozinho na nossa casa, com tudo o que me lembrava dela, eu ainda dava em doido. Por isso, assim que os meus filhos me falaram em ir para um lar, ao menos estava acompanhado e tratavam de mim, disse logo que sim, está bem. Mal sabia eu que iria partilhar um quarto contigo. E às vezes a cama e aquelas coisas que não são para se dizer.

Pelo que dizias, sempre foste assim. Se fosse hoje em dia, quando até já se pode casar homem com homem e mulher com mulher, talvez nunca tivesses guardado isso no silêncio e poderias fazer isso às claras com quem quisesses. Mas os tempos eram outros, essas coisas, feitas pela calada, não se diziam. Mas tal como vim a saber que toda a gente aqui sabe o que tu és embora nunca ninguém tenha dito nada, também a tua mulher sempre soube. Naquele tempo, para uma mulher, mais valia ter uma amostra de homem do que não ter homem nenhum, e por isso não exigiu mais de ti do que lhe dares filhos e cumprires as tuas responsabilidades de pai. Como vocês tiveram logo duas gémeas, ela não mais te procurou e entreteve-se entre os afazeres do trabalho e das miúdas e tu pudeste fazer o que querias fazer com quem calhasse, quando calhasse, sempre com toda discrição, claro. Só com ambos reformados e as filhas encaminhadas é que vocês se separaram: ela ficou com a casa e tu vieste para aqui.
Não vou ser hipócrita e dizer que não sou como tu. Afinal de contas, não me neguei a nada que me propuseste. Mas antes de ti, nunca sequer me ocorreu fazer isso que fizemos sem nada dizer. Os meus interesses foram só para mulheres e até confesso que até foram umas quantas que desejei, antes e depois da Adelina, embora tenha sido sempre fiel. Mas no fundo, contigo, a questão nunca foi seres homem como eu, a questão é que tinha alguém para abraçar, ter o que ainda podia ser mais parecido com amor no que me restava da vida. Sempre eras um conforto que eu tinha contra o espinho da minha solidão. Mas até me isso foi negado e partiste para o outro mundo primeiro que eu. Como é que me pudeste fazer isso?

Por isso, já decidi. Lembras-te quando o Virgolino, com uma Alzheimer tal que nem sabia a quantas andava, se enfiou no nosso quarto, revolveu tudo e até mijou no roupeiro, e assim ficámos a saber que ele era pai da Directora e que estava no lar à pato num dos melhores quartos? Quando a esse lhe der o badagaio - e isso está por dias - peço à Directora para ir ao quarto dele em troca de manter o meu bico calado. Já que estou fadado para passar o tempo que me resta sozinho, ao menos passo-o sossegado e bem arranjado no meu canto, a pensar na minha vida, na Adelina, nos meus filhos e netos e nas coisas que fiz contigo mas que nunca poderei dizer. Sempre ouvi dizer que o silêncio é de ouro.            

domingo, 8 de dezembro de 2013

Happy Ending

Que festa esta aqui na Cidade dos Anjos. Com tanta cor, tanta luz, talhada mesmo à moda de Hollywood. O Coliseu de Los Angeles ao rubro, o Lionel Richie a cantar. E eis que tudo estoira num turbilhão de aplausos quando entro no estádio, ladeado pelo Spedding e pelo Treacy. Pode ser que eu pareça ter um ar compenetrado enquanto caminho para o pódio, mas por dentro ainda não acredito que tenho um lugar de honra nesta festa olímpica ao estilo Hollywood. Logo eu, o Carlitos de Vildemoinhos!

Em apenas um segundo, vejo toda a minha vida desfilar: a minha infância em Vildemoinhos, a minha Mãe a fazer contas como ninguém apesar de não saber ler e escrever, o meu Pai que ganhou num jogo da malha ao meu professor da 1.ª Classe (e este, ressabiado, fez-me repetir o ano), o meu primeiro trabalho a dar serventia a pedreiro, outro a fazer recados ao ourives e a chegar antes que ele desse conta que tinha partido, os meus primeiros passos no atletismo, ver o mar pela primeira vez aos dezassete anos, o rumo a Lisboa e ao Sporting onde prosperei sob a sábia orientação do Prof. Moniz Pereira e onde conheci a Teresa, as minhas primeiras grandes vitórias, os despiques com o Mamede, a minha estreia olímpica em Munique, o finlandês Viren a ultrapassar-me em Montreal, o nascimento dos meus filhos, a travessia no deserto por entre cactos de lesões, a acupuntura do mestre Kobayashi, o atropelamento na Segunda Circular, a partida para a Califórnia, as medalhas de bronzes da Rosa e do Leitão, o meu ataque aos 37km deixando o irlandês e o inglês para trás só parando na linha de meta onde encontro o ouro olímpico, onde no meu coração coube a alegria de dez milhões de portugueses.

Nestes últimos dez anos, tanto que o meu país mudou depois de conhecer a liberdade. O futuro ainda é incerto, o presente ainda é duro, o passado ainda marca. Mas existe esperança, agora que a poeira da revolução assenta e o sabor da liberdade já está mais entranhado que estranhado. Foi esta esperança que carreguei comigo ao longo destes quarenta e dois quilómetros. Mesmo tão longe, senti o meu país a correr comigo, ouvi os corações dos portugueses a baterem ainda mais acelerados que o meu, bem como os gritos de júbilo quando cruzei a linha de meta. 

Recebo a medalha de ouro das mãos do Sr. Samaranch e de repente, pela primeira vez, soa o hino de Portugal em solo olímpico. E sinto-me como o Homem do Leme do Fernando Pessoa, cá no pódio sou mais que eu. Sou todo o Portugal a ecoar pelo mundo, debruado no verde e vermelho da bandeira.

Este filme teve drama, comédia, suspense, suor, lágrimas, sangue mas como qualquer filme de Hollywood que se preze, tem um final feliz com as palavras "THE END" a surgirem no ecrã ao som de uma música triunfante. Para mim e para o meu país, há vida para além dos filmes e ela segue dentro de momentos. Mas que já há muito que nós merecíamos um happy ending destes.    

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Base Sólida

Miguel

Raios partam o teu primo Francisco. Tive a feliz ideia de seguir o conselho dele e pôr as minhas cartas na mesa com a Cláudia. Levei-a a jantar ao restaurante japonês que ela gosta e depois fomos tomar um copo ao Bar Cáspio, tentando imprimir uma subtil matiz de romance para que não fosse apenas uma saída como amigos. O meu plano era fazer uma grande declaração, dizer-lhe tudo o que ela significa para mim, que já há muito que eu não a vejo apenas como amiga, que com ela sinto-me como nunca senti ao pé de outra rapariga. Na melhor das hipóteses ela se aperceberia que o tipo decente que ela procura, longe dos estroinas com quem ela andou no passado, esteve sempre debaixo do seu nariz, que aliás ela também já me andava a ver com os outros olhos, que já não era apenas o discípulo e amigo do seu irmão e terminaríamos num tórrido beijo com sabor ao Campari que ela estava a beber.
Na pior das hipóteses, ela ria-se de mim, dizia para não ser tonto, que só gosta de mim como amigo e algo mais estava completamente fora de hipótese, que aliás anda de olho num manfio qualquer, mas pelo menos as minhas dúvidas acabariam logo ali.

Mas não, estive sempre a adiar, os meus discursos soavam fabulosos na minha cabeça mas quando abria a boca para falar não me saía nada. Foi então à saída do Cáspio, ela olhou para mim, perguntou "Tomás, o que tens?" e sem saber como, beijei-a. Não pode ter sido exactamente como eu imaginava, nem sequer soube a Campari, mas também foi bom. Até porque ela não ofereceu resistência e também entregou-se ao momento e durante esses breves segundos, parecia que o universo iria ficar alinhado. Só que depois, ela ficou ainda mais confusa que eu e disse-me que era melhor ela ir sozinha para casa. Ainda lhe disse "Cláudia, sabes que eu gosto de ti, não sabes?" e ela ainda se virou para responder um "Sei, sim!". Por um lado fiquei a saber que não lhe era indiferente, mas por outro, o facto dela ter-se posto a milhas logo a seguir, deixou-me desolado. Pior que um não, só mesmo um nim.

O Pedro diz sempre que se um homem que não é feio nem parvo, tem as mulheres que quer, mas não é assim tão simples. Nem todos foram abençoados com a confiança de quem caminha numa corda bamba sem recear a queda, como ele ou o Francisco. Tu é que me podes compreender melhor: se hoje tens a capacidade de conquistar um mulherão como a Sandra, foi algo que conquistaste com muitos erros, second guessings e batalhas interiores. Já eu não só sou extremamente tímido e introvertido como o meu único relacionamento mais significativo acabou bruscamente, quando ainda nem se podia considerar oficialmente um namoro. Ainda hoje penso se podia ter feito alguma coisa para evitar que a Mónica se atirasse de uma ponte e entristece-me saber que aquilo que estava a nascer entre nós não foi suficiente para se agarrar à vida. Só mais tarde vim a saber que ela tinha sido vítima de abusos sexuais em criança que a remeteram para uma escuridão que nem as minhas ténues centelhas foram suficientes para ela poder iluminar uma fuga.

E agora temo que com a Cláudia, a história termine mesmo antes de começar. Resta-me a esperança de que ela dissipe as dúvidas e perceba que da nossa amizade possa surgir algo bem intenso e sólido. Se não o fizer, vai-me custar muito mas que diabo, eu não vou morrer por causa disso. Sobrevivi aos olhares incompreendidos, aos comentários em surdina de certos familiares, ao bullying no 3.º Ciclo, à morte do meu Pai e aos trambolhões e quedas que dei quando perdia o equilíbrio da corda bamba. Por isso, acredito que não há nada, por mais triste ou trágico, que me impeça de me erguer de novo.  Paguei um preço alto por aquela base sólida de amor-próprio que se mantém em pé quando os meus alicerces tremem e mais ninguém, nem mesmo aquela que eu amar, seja quem for, me poderá vender algo em troca.

Tomás 

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Doces Subtilezas

Tomás

Sim, tem sido um bocado difícil deixar de fumar. Nos primeiros dias então, parecia-me uma missão impossível, os pensos de nicotina e as pastilhas que mastigava sempre que me apetecia pegar num cigarro eram fraco consolo. Dois meses depois, por vezes ainda tenho fortes desejos de fumar, mas estes vão se tornando cada vez mais fáceis de suportar. Tantas vezes, basta apenas esperar aí uns dois ou três minutos e já não tenho vontade. Mas tem valido a pena, já noto que me canso menos e já não oiço a Rita a queixar-se de que me beijar é como se estivesse a dar um linguado num cinzeiro. E se eu meti na cabeça que ia deixar de fumar, é o que eu vou fazer. Nunca se sabe para o que estamos guardados, se até a alguém como o Pedro pode lhe acontecer uma porra daquelas. 
E agora em retrospectiva, compreendo que o facto de eu fumar tanto era porque cedia rapidamente a esses desejos, que talvez conseguisse reprimir se eu fosse um pouco mais paciente. Todos nós somos um poço de contradições, e uma das minhas é ser tão impaciente e querer que as coisas aconteçam imediatamente mas ao tempo eu sei que é com calma e gradualmente que consigo fazer acontecer aquilo que eu quero.

E tu, quando é que fazes algo quanto à tua resolução? Ainda não vi nada. Claro, eu compreendo que é complicado quando a rapariga que tu gostas é a irmã do teu patrão,  ainda que este seja teu mentor e amigo. Também sei que o Pedro é todo boa onda e descontraído, mas fica melindrado quando o assunto são as três mulheres da vida dele - a mãe, a filha e a irmã. E que a única relação que mais tiveste parecido com um namoro deixou-te más recordações. Mas ainda assim, acho que devias tentar, dá para ver que a Cláudia engraça contigo e se ela se aperceber que podes ser mais que um amigo, não ficará desiludida. Por isso deixa de ter medo de errar, activa o modo romance e sai da friendzone, senão aí é que nunca passas de amigo e é outro que a apanha. Em várias coisas, tu e a Rita são muito parecidos. Quietos, reservados, introvertidos, não muito dados a socializar mas extraordinários assim que alguém vos conhece um pouco melhor. Bem mais extraordinários do que vocês pensam que são.

Sabias que mesmo quando andávamos naquela fase da amizade colorida e que pensávamos que o que havia entre nós não seria mais que tusa, a Rita não acreditava quando lhe dizia que ela era tão sensual? Apesar de não ser inexperiente sexualmente, ela nunca se tinha visto como alguém que pudesse deixar um homem em brasa e fazê-lo imaginar uma noite de tórrida paixão com ela. Acreditava que podia cativar pela simpatia, pela inteligência ou por ser "engraçada e fofinha", mas não por ser sensual. Mesmo quando lhe dizia o quanto ela me excitava e tendo como prova a minha tenda toda armada mal a abraçava contra mim. Ainda demorei a convencê-la que a sensualidade pode ser algo muito subtil e que só porque não seja explicitamente exibida não significa que não existe. Surpreendida pelos meus avanços e lisonjeada por haver alguém a olhá-la dessa forma, ela entregou-se a mim sem reservas e quem se surpreendeu fui eu, que a desejava cada vez mais. E a Rita percebeu até que eu não era o único a captar aquelas doces subtilezas que me deixavam tão louco por tê-la sob mim.  
É óbvio que ao princípio, nós os dois pensávamos que isto não ia durar, que era só sexo,  e que era só para tirar a barriga de misérias após as nossas últimas relações e que a chama iria eventualmente apagar-se tão depressa como se acendeu. De modo algum pensávamos que iríamos acabar por nos casar três anos mais tarde. Como estávamos enganados!

Por isso, não tenhas receio. Quem sabe se a Cláudia não vê em ti coisas que não consegues ver por ti próprio e perceba que é de alguém como ti que ela anda à procura. Pelo menos sabes que não vais saber a cinzeiro se a beijares.  

Fica bem!

Francisco                

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Sopro de Vida

Miguel

Muito me alegro que essa tua resolução de não te negares à comida menos saudável caso te apeteça não te tenha impedido de continuares a deixar de lado do ginásio. Eu sei que não vais admitir nem morto, mas estou em crer que já não passas sem as sessões de tortura do Marcelo, o "nazi de Pernambuco" como tu tão afectuosamente lhe chamas, no ginásio e que o vício do exercício já há algum tempo se sobrepõe ao teu vício da comida. Ouso mesmo afirmar que o apelo que a comida exerce sobre ti já é bem menos irresistível e até já te causa alguma náusea a ideia de comeres, por exemplo, um prato cheio de molotofe. E se me permites ainda mais um atrevimento, acredito que essa tal de Sandra não é estranha a essa tua determinação em continuares a atacar o ginásio. Não vejo a hora de me juntar a vocês mas tenho que ir com calma pois só há duas semanas é que saí do hospital após o AVC, que felizmente não me deixou sequelas, e só anteontem é que fui trabalhar e só para fazer trabalho de escritório. Felizmente que a Vera, o João e o Tomás têm dado muito boa conta do recado na clínica. Por muita impaciência que eu sinta em voltar a minha vida de sempre, não me esqueço do que acabei de passar, de que eu cheguei a estar mais para o lado de lá do que o de cá e preciso de todo o repouso que puder.

Mas em relação ao que me perguntaste no outro dia. O AVC deixou-me com menos medo da morte? Sim e não. A morte continua-me a assustar imenso, até porque não me recordo de ter experimentado aquilo que foi alegadamente descrito por quem passou pelas experiências de quase-morte: túneis de luz, visões do entes queridos falecidos, fugas para fora do corpo onde uma pessoa assiste a tudo como se estivesse a flutuar. Quando recuperei a consciência foi como se tivesse acordado de um longo e profundo sono, sem interferência de consciência ou do subconsciente. E por isso, continuo a temer a morte porque temo que depois da vida, não exista Céu, Inferno, reencarnação, ou simplesmente algo mais uma eterna escuridão. Também receio a morte porque eu quero ser pai que a minha filha precisa, quero vê-la crescer, tornar-se mulher e acompanhá-la a par e passo na sua vida. Se eu próprio não consigo imaginar a minha vida sem os meus pais e se custou tanto ao Tomás perder o pai aos 22 anos, o que menos queria é que a Joana ficasse privada do pai tão cedo. Ou que os seus três anos de vida não lhe permitissem guardar uma memória nítida de mim.
Por outro lado, após as dores que senti antes de perder a consciência, a única sensação que me lembro de sentir foi a de uma estranha calma a sobrepor-se a todos os meus pensamentos, sobretudo os mais aflitivos. Se essa mesma calma for a última sensação que sentirmos quando chegar o nosso instante final, não é uma má maneira de deixar este mundo. Contudo, espero que esse momento ainda esta longe de chegar a mim ou a qualquer um daqueles que amo.

O facto também ter sido pai também me ajuda a recear menos a morte, ao menos sei que deixarei aqui algo que faz parte de mim, feito da minha matéria. Nem sei como é que a Marta me convenceu, quando há quase quatro anos foi atacada pelo relógio biológico e quis ter um filho à força toda. Como ela na altura não tinha com quem, virou-se para mim por eu ser um dos poucos ex que ficaram amigos dela e porque, segundo a Marta, ser aquele providenciaria os melhores genes. Nunca na vida pensei ter um filho com alguém com quem não tivesse junto, mas não me arrependo de ter aceitado o desafio da Marta. Criar a Joana a meias com ela tem tido a sua dose de trabalhos e de chatices, mas tem valido a pena.  Temos ambos feito o melhor que pudemos para lhe refrear as birras e os ânimos exaltados. Claro que tendo ela três anos, não dá para fazermos milagres, mas até que ela não nos dá mais água pela barba do que seria de esperar. E não é por a Joana não ter os pais juntos que tem sido menos amada e cuidada. Até porque, por ela, tenho sempre uma reserva inesgotável de amor. Um amor impossível de explicar e que só poderás entender quando fores pai. 

Tal como é tão difícil de explicar como é acordar da escuridão causada pelo AVC, voltar a abrir os olhos e respirar. Até as dores que sentia eram um novo sopro de vida. Depois de passar por isto tudo, tenho intenção de reduzir as correrias da minha vida ao mínimo possível. A vida é só esta, cada momento é precioso e no fim, o que interessa não é aquilo que alcançámos, mas aquilo que sentimos. Só espero que seja permitido continuar a sentir mais no que me resta da vida. Sobretudo o amor da Joana, da minha família, dos meus amigos e, com um pouco de sorte, de alguém que decida que a sua vida será melhor vivida comigo ao seu lado.

Pedro  




segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O Animal

Diante do espelho da casa de banho, ela retoca a maquilhagem. O sorriso malicioso que lhe devolve o reflexo evoca as memórias da noite passada, de sexo tórrido e espantoso, porque contendo a certeza de ter sido uma noite irrepetível. Em boa hora que a sua amiga Flore a convenceu a irem passar uma semana a Portugal, na belíssima Costa do Estoril. Como sabia bem trocar o Outono chuvoso e lúgubre da sua cidade do Norte de França por um sol português ainda luminoso e quente apesar de já ser Outubro. E sobretudo, deixar de carpir o fim da relação com Adrien, que tanto teve de abrupto como de decepcionante, com um travo ainda amargo após cinco meses. Mas nem nos seus melhores sonhos imaginaria que aquela semana teria como bónus um caso de uma noite com aquele grego atraente e sensual até dizer chega. Decidindo que ele seria perfeito para acalmar as suas feridas abertas deixadas pela desilusão com Adrien e - tinha que o admitir - saciar as saudades de ser possuída por alguém, chamou a si os seus poderes de sedução e o seu charme de francesa. Verificou alegremente que estes surtiam efeitos no belo grego e teve que se controlar para não saltitar de impaciência quando ele a convidou para irem para o quarto dele. Ela teria preferido que as coisas tivessem decorrido de forma rápida e despojada. Que aquele homem de ar imensamente viril e quase perigoso a dominasse e a usasse com impaciência e crueza animalesca. No entanto, ele foi inesperadamente terno, tão delicado ao tocá-la e tão paciente a possuí-la. Por um lado, o prazer foi maior assim mas por outro tornava a situação mais complicada. Porque lhe dava a vontade de mais, de saber mais sobre ele além do pouco que lhe dissera - que se chamava Apostolos ou Tolis, que era de Salónica, que tinha 31 anos, que estava de passagem por Portugal e que ia para o Brasil no dia seguinte. Sobretudo de o querer mais...Mas por muito que quisesse, o melhor é deixar as coisas como estavam e de o guardar numa doce recordação. 
Ela sai da casa de banho, pega na mala deixada ao pé do mini-bar e lança-lhe um último olhar enquanto ele dorme. Sim é melhor sair, antes de complicar tudo. Antes de sair do quarto, sussurra-lhe "obrigado" em três línguas. Thank you, Tolis. Merci. Efharisto.

Assim que ela sai do quarto, ele senta-se na cama. Foi melhor assim,  fingindo que dormia enquanto ela se recompunha para ir embora, sem despedidas, sem mais conversas. Apenas uma bonita francesinha que ele pernoitou. Certamente que ela não se chamava Marie e se escondeu por detrás desse comum nome francês, tal como ele se escondeu por detrás do nome do seu irmão mais velho, aniquilado pela droga há três anos. Gostava de lhe poder dito isso, e muito mais sobre ele. Mas a vida dele não o permite. Desde que há dois anos foi admitido naquela empresa de segurança privada que actua nos lugares mais perigosos e mais exclusivos do mundo, ele quase que nem se pode dar ao luxo de ser humano. Apenas uma sombra a velar por alguém, um animal pronto a reagir a qualquer sobressalto. O gosto de exercer a profissão, o seu empenho por excelência em tudo aquilo que se metia e especialmente a considerável compensação financeira que lhe permitia que a sua família fosse relativamente poupada ao calvário económico que assola o povo grego eram as suas motivações nos momentos mais árduos. Mas a sua última missão no Iraque tinha sido particularmente difícil e ele tinha acusado o cansaço de se mover constantemente como um cão de guarda, esforçando-se para trancar as emoções para que estas não o traíssem. Não lhe podia ter agradado mais saber que a sua próxima missão seria de escoltar um figurão qualquer do COI durante uma visita ao Rio de Janeiro, para ver o avanço das obras dos próximos Jogos Olímpicos. Aproveitou para passar três dias em Portugal para descansar antes de seguir para o Brasil e renovar energias para estar à altura do que lhe era competido. Nunca teria imaginado que parte dessa descontracção envolvia uma cena de sedução mútua com Marie, mas a oportunidade que ela lhe estendera era tentadora demais para recusar. Apesar da sua atitude atiradiça, pressentiu-lhe algumas dúvidas na auto-estima, a necessidade de confirmar que ela era bonita e desejável. Também reparou que ela andava em busca de uma satisfação sem entrega. Mas isso não lhe concedeu. Pelo menos naquela noite, ele não seria um animal nem um objecto funcional. Ele seria um homem, um amante. E reclamou que a rendição dela fosse igual à sua. O que resultou num profundo êxtase que teve o inconveniente de o deixar a querer mais. Mas isso era um luxo que ele não podia ter. 
Na casa de banho, enquanto lavava a cara, o espelho devolvia-lhe o rosto de um homem reconfortado, apaziguado. Onde o animal cedeu o seu lugar ao ser humano. Ao menos isso. Thank you, Marie. Merci. Efharisto.          
       
  

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Jogo de Tabuleiro

Francisco:

Sabes o que invejo na tua relação com a Rita? Não é o facto de vocês os dois já serem pessoas espetaculares isoladamente e de juntos parecerem ainda melhor, cientes da noção do que amar não é encaixar peças de puzzle mas sim ser o mesmo peão no percurso neste jogo de tabuleiro que é a vida, mesmo quando os dados não estão favoráveis. Nem sequer a aura de tranquilidade que vocês transmitem a quem vos rodeia, dando a ideia que a vossa relação é quase perfeita e sem esforço. O que mais invejo é como a vossa relação é algo de bastante sincero e adulto sem deixar de ser intenso e emotivo e há quatro anos que tem sido assim, tirando obviamente o período em que vocês andaram a brincar aos amigos coloridos sem admitir que já eram bem mais que isso durante mais tempo do que deviam.

Infelizmente as duas relações mais importantes que eu tive falharam por falta de sinceridade e por eu me ter deixado iludir durante demasiado tempo. Quando conheci a Ana, o meu corpo tinha perdido vinte e quatro quilos mas a minha mente não. Vampira como ela era, apercebeu-se disso e alimentava-se das minhas inseguranças. Quando olho para trás, até tenho estas imagens de eu sentindo-me miserável e ela com um discreto sorriso no canto da boca, como uma sanguessuga reabastecida. Perdido entre os conflitos do que eu era por fora e de como me sentia por dentro, e extasiado por finalmente me sentir desejado, fui a sua dose diária durante quase dois anos. Acreditei piamente que era somente porque tinha emagrecido que as coisas tinham mudado e finalmente havia alguém interessado em mim. Mas como continuava com os mesmos 24 quilos por dentro, acreditava sempre que a Ana me fazia sentir que ela era o melhor que eu iria arranjar, que ela poderia facilmente arranjar alguém melhor mas que queria ficar melhor, que não obteria amor e sexo de (o facto de ela ser muito boa na cama só piorava as coisas) de mais ninguém. Foi preciso ter dado comigo no chão da casa de banho após mais uma discussão cheia de drama que ela armou, sem forças para me levantar, com a moral na merda e um vómito a querer subir pelo estômago para finalmente ser sincero comigo mesmo. Assim que comecei a sê-lo, passei a ver a Ana pelo aquilo que era realmente era e o poder que ela tinha sobre mim foi-se dissipando.

Já com a Lígia, o engano foi só meu. Depois do que eu passei com a Ana, foi reconfortante entregar-me à atenção com que ela me rodeou, sentir-me desejado por uma mulher mais velha. A Lígia era totalmente diferente da Ana: madura, culta, apaziguadora, reconhecendo o meu valor mas chamando-me à razão se eu estivesse a ser menos correcto. Mas acabei por me envolver mais do que devia, porque era mais certo que isto era uma relação a prazo, pois eu nunca poderia ser aquele que ela precisava: alguém que a ajudasse a reconstruir a vida e ser um pai para o filho dela, apesar de eu também ter-me afeiçoado bastante ao miúdo. A Lígia ainda deixou-se ir, refugiada no conforto de ter alguém a seu lado, mas acabou por abrir os olhos e abrir os meus também. E lá acabou por seguir cada um com a sua vida, de forma civilizada. 

Tudo isto para dizer que fui para a cama com a Sandra, aquela rapariga que tu e a Rita com quem eu estava quando nos viram à saída do cinema. Temos andado de sair em termos amigáveis, apesar de desde cedo haver uma atracção mútua. Mas com o AVC do Pedro e tanta coisa que ando a questionar na minha vida, a Sandra apanhou-me num momento mais vulnerável e entreguei-me ao momento. Se não tivesse sido bom, tudo seria mais fácil, bastava voltar à casa de partida (sem receber 2000 escudos, não sei quantos euros são no Monopólio actual). Mas o problema é que foi bastante bom. Talvez ainda melhor do que com a Ana ou a Lígia. Foi por ter sido tão bom com elas as duas é que me deixei iludir. Por isso, agora tenho que manter a minha game face, e para onde rolem os dados, vou tentar sincero desde o princípio, mesmo que alguém saia magoado. Se não tivesse um instinto tão avariado no jogo afectivo, até podia dizer que isto com a Sandra pode ser algo promissor. Mas agora tudo o que posso fazer é lançar os dados.

Miguel          


domingo, 22 de setembro de 2013

Cortar o Fôlego

Pedro:

Acabaste de nos pregar o maior susto das nossas vidas. Mas ainda bem que estávamos todos juntos quando te deu aquele maldito AVC. Nem deves imaginar a agonia enorme que foi ver-te cair inanimado assim de repente, como um boneco que ficou sem pilhas. Felizmente que o meu treino dos bombeiros, a rapidez do Miguel em chamar o 112 e a lucidez inquebrável do Francisco quando toda a gente estava no limite da histeria, aliada ao profissionalismo dos médicos que te operaram, ajudaram a que tudo isto não tivesse passado de um negro mas breve pesadelo. As coisas teriam sido certamente muito diferentes se isso te tivesse acontecido quando estivesses sozinho.
Porém o pesadelo ainda se arrastou por dias, e além de nós os três, toda a gente que te ama passou esta longa e negra sucessão de horas: os teus pais, a tua irmã, a mãe da tua filha. E até mesmo a Joaninha, sem que ninguém tivesse tido a coragem de lhe contar a gravidade de situação, pressentiu que esteve perto de ficar sem pai. Todas estas pessoas andaram todos estes dias como se o chão lhes fugisse debaixo dos pés a qualquer momento, ora com o peito apertado de tanta agonia e ansiedade, ora em estado de zombie sonâmbulo.

Na manhã do dia em que acordámos do pesadelo, ainda sem saber que horas deixarias os cuidados intensivos e voltarias a abrir os olhos, o Francisco, o Miguel e eu fomos tomar o pequeno almoço a uma pastelaria perto do hospital. Qual é o nosso espanto quando o Miguel, que não tocava em qualquer coisa doce há quase um ano, decide pedir uma enorme bola-de-berlim a transbordar de creme. Mesmo sem que eu ou o Francisco disséssemos algo, as nossas caras de espantados eram tão transparentes que ele declarou:

"Sejamos sinceros. Se nós imaginássemos que isto iria acontecer a um de nós os quatro, o mais provável era que fosse eu. E o Pedro o mais improvável. Ele praticou todos os desportos possíveis, levanta pesos desde antes da puberdade, é ultra-cuidadoso com aquilo que come, se deu mais de cinco passas de cigarro na vida já foi muito. E no entanto, é ele que está todo entubado nos cuidados intensivos e sabe-se lá como vai sair desta. Por mim, está decidido, não me vou privar nada. Sim, vou continuar a ter cuidado com a alimentação, vou continuar com as sessões de tortura no ginásio, mas se me apetecer o bolo mais calórico, podem ter a certeza que vou comer. A vida é curta e dela só levamos os prazeres que soubemos tirar dela."

Foi então o Francisco tomou logo ali a resolução de deixar de fumar. Sim, estamos a falar do Francisco, que fuma cigarros como quem come tremoços. Mas ele foi categórico em afirmar que quando merdas destas acontecem, se já é suficientemente complicado quando se tem pulmões saudáveis, com pulmões forrados a alcatrão torna-se impossível. O certo é que ao fim de três dias, ainda não pegou em nenhum cigarro. Claro que por vezes revela os sintomas da privação de fumar, mas sendo obstinado como é, será difícil o Francisco ceder. 
Eu também tomei naquele momento e naquele sítio uma resolução, mas não disse a ninguém senão a mim próprio. Ainda não sei bem como hei de fazer, ainda tenho medo do que vão pensar quando o revelar - incluindo tu. Mas sinto que é um risco que tenho de correr e que me irei arrepender amargamente senão o tomar. Já bem basta as outras tantas vezes que não segui um rumo por medo de arriscar...

Porém, agora o importante é que tu despertaste do nosso pesadelo colectivo, como luz a invadir a noite escura e aqueles que te amam recuperaram a respiração sustida. A operação não deixou sequelas e em breve estarás de novo em casa. Não tarda nada, todo este drama não passará de um obstáculo no teu caminho que soubeste transpôr e continuarás a ser o mesmo Pedro de sempre. Irás a ser de novo o óptimo pai que és para a Joaninha, o irmão protector da Cláudia, o filho atencioso para os teus pais, e o companheiro ideal para aquela que procuras e um dia encontrarás. E nós continuaremos a aborrecermo-nos com a tua mania de exercício, da comida saudável, de nos chamares molengões e a adorar-te por isso e muito, muito mais. Tal como a saúde, a amizade é um bem precioso e ter-vos como amigos é algo inestimável, sobretudo para quem viveu uma infância e adolescência solitária como eu. 

Por isso, recupera a tua saúde e respira a vida que quase te escapou (e que a nós três também pareceu cortar-nos o fôlego). E já sabes que nós os três estamos aqui para o que der e vier. 

Tomás 

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O Olimpismo está em nós


O Olimpismo é algo que me apaixona desde que me conheço. No entanto, dada a minha ausência de talento para o desporto e de meios para deslocar-me às cidades que organizavam os demais Jogos Olímpicos, sentia que seria esta uma paixão confinada aos meus sonhos mais utópicos. A minha experiência como voluntário nos Jogos da Lusofonia 2009 em Lisboa e nos Jogos Desportivos da CPLP 2012 em Mafra ajudou porém a fazer com que esses sonhos não fossem tão distantes, até porque, sem o saber concretamente, pude assistir nesses eventos a várias manifestações dos valores olímpicos: a excelência, o respeito e a amizade.

Esse sonhos ficaram ainda mais próximos quando assisti a uma sessão da Academia Olímpica de Portugal em Almada e me vi rodeado de pessoas dos mais diversos quadrantes que partilhavam a minha paixão pelo Olimpismo. Quando eu soube do concurso de bolseiros para Sessão de Jovens Participantes da Academia Olímpica Internacional de 2013, que oferecia a oportunidade de ir a Olímpia, o berço dos Jogos Olímpicos, e conviver com jovens do mundo inteiro, não hesitei em participar. Quando recebi a carta a dizer-me que eu seria um dos dois representantes portugueses na Sessão, mal podia acreditar, tive que reler a carta mais vezes. Foi uma espera ansiosa até ao dia 11 de Junho, quando embarquei rumo à Grécia.

Quaisquer adjectivos que possam descrever as duas semanas que vivi em Atenas, Delfi e Olímpia parecem tão insignificantes diante tudo o que me foi permitido sentir e experimentar. Éramos mais de 160 jovens de 81 países, de diferentes realidades e percursos de vida, de atletas olímpicos e paralímpicos a académicos, treinadores e gestores. Porém, aquilo que nos diferenciava perdia importância diante daquilo que nos unia, ao ponto de nos parecer estranho que a Humanidade tenho sempre erguido muros ao longo dos tempos a diferenciar as pessoas - nações, religiões, raças, géneros - quando basta apenas uma palavra, ou até um sorriso, para os derrubar.

No ano do 150.º aniversário do nascimento de Pierre de Coubertin, o tema da Sessão foi o Legado Olímpico e como ele pode influenciar e fortalecer a juventude atual. Imersos na herança cultural da Grécia Antiga, atentos aos conhecimento adquiridos nas palestras, contagiados pelo entusiasmo dos nossos coordenadores, dedicados às diversas actividades desportivas, artísticas e lúdicas, inquisitivos na reflexão dos temas que surgiam nos grupos de discussão, acabámos por descobrir que o legado olímpico está em nós. Os valores olímpicos da excelência, do respeito e da amizade, que vivemos nestas duas semanas de forma tão palpável que até parecia bastar respirar o ar de Olímpia, estavam em nós. Ao vivermos segundo estes valores pelos meandros das nossas vidas, estaremos a promover o Movimento Olímpico e a transmitir o seu legado para o futuro.

Ao longo da sua história, os Jogos Olímpicos deixaram inúmeros legados, positivos e negativos, materiais e imateriais, sendo cada qual uma lição que as gerações vindouras devem aprender. Mas mais do que o impacto organizativo positivo de uns Jogos Olímpicos, as proezas incríveis dos atletas ou mesmo a promoção do desporto, da saúde e do meio ambiente, o verdadeiro sucesso do Movimento Olímpico será inspirar cada geração a lutar por um mundo melhor, dando o melhor de si e deitando abaixo as barreiras que teimam sempre em separar as pessoas. Tal como o fizemos em Olímpia.

Na hora da despedida, não evitámos as lágrimas. Ao fim daquelas duas semanas, passámos de estranhos a amigos. Agora éramos todos portugueses, gregos, sírios, guatemaltecos, japoneses, chilenos, australianos suazis. Todos cristãos, muçulmanos, budistas, judeus, ateus. Todos desportistas, poetas, professores e bailarinos. Todos humanos, pois os valores olímpicos são os valores da Humanidade. Mesmo se as nossas vidas nunca mais se voltarem a cruzar, pelo menos guardaremos as memórias de Olímpia, que perdurarão para o resto da vida. Tal como a vontade de viver a vida pelos valores do Olimpismo e fazer com que o seu legado seja cada vez mais forte. Viemos de tão longe, para perceber que o Olimpismo sempre esteve em nós.  

domingo, 25 de agosto de 2013

Antologia Poética 1999-2002 (Volume 2)

ÍRIS

Quando tudo parece irreal,
Respiramos e votamos a viver.
Tudo tão belo que custa a crer.

Foste um sonho tornado real
Quando vieste no sol da manhã
Fresca e doce como rubra romã.

Agora o real parece ilusão
Juntos, outro mundo começou
Soltamos alegria numa canção
Foste rio que em meu mar desaguou

Mesmo se for de curta duração
Valeu por aquilo que em mim mudou
No espelho - olhar uma revelação
Descobri aquele que eu sou

O OUTRO

Que tem o Outro que não tenho eu?
Como é que ele te fará feliz?
Queria saber, mas ninguém me diz.

Porque é que teu coração não é meu?
Porque te entregas a esse alguém,
Em vez de mim, que te amo como ninguém?

O outro é mais belo, mais forte?
Ele ama-te com a mesma paixão
Como a que trago no meu coração?
Quem me dera ter a sua sorte!

Ele jurou amar-te até à morte?
Também será teu o seu coração?
Só sei que ele tem a tua devoção
E eu tenho um amor sem norte.

INVEJA 

Sou o que tem voz e não deixam falar.
Sou o que tem luz e não pode alumiar.
Sou o que amo sem poder ser amado.

Sou um sonho que foram acordar.
Sou uma ave impedida de voar.
Sou o que não é perdido nem achado.

Não sei porque calam este meu grito!
Talvez por inveja, má conselheira...
Pois eu hei de ir além da cegueira
E encontrar a imagem do Infinito!

Vossas ameaças não me deixam aflito.
Deixem a inveja, gente traiçoeira!
Passem a ser gente verdadeira
E cantem comigo num longo grito.

DEDOS FLUTUANTES

Dedos flutuantes na minha pele...
No meu torso, lábios ardentes...
Uma mão nas minhas costas quentes

Fitam-me uns olhos cor de mel
Que brilham pela noite escura,
Cheios de amor e doce ternura

Vem ao refúgio dos meus braços
Mostra-me teu encanto de mulher
Sente o calor dos meus abraços
Sedentos de abraçar e de viver.

Ofereço-te um amor puro e louco
Como aquele que sonhaste ter.
Tudo o que te disser, ainda é pouco
Só me amando poderás saber...

A TUA MENTIRA

Dói-me o coração, consome-me a ira...
Na minha boca, o sabor do agro fel...
Porque acreditei na tua mentira.

Prendido em tua garras, vampira
Sem coração, violenta e cruel,
Porque acreditei na tua mentira.

Fui tão cego por querer amar
E por me dar a quem não devia.
Amaldiçoada para sempre vais ficar
Por não teres senão uma alma vazia.

Mentirosa - é o que te irão chamar!
Será como a minha, a tua agonia.
O teu castigo será sempre errar
Por entre uma vida incolor e fria.

AMIGOS

Quantas noites passámos acordados
Debaixo de estórias, risos e segredos,
Contando as nossas esperanças e medos.

Quantos momentos vivemos apaixonados
Pela vida que estava à nossa frente,
Pela nossa amizade sempre presente.

E as canções que sabíamos de cor?
E o chocolate quente a fumegar?
E as conversas sobre a vida e o amor,
Sobre o mundo que queríamos abraçar?

Amigos! Que saudades do calor
Do abraço que só amigos sabem dar!
Crescemos e separámo-nos, mas com fervor
A nossa amizade iremos sempre acalentar!  


sábado, 24 de agosto de 2013

Antologia Poética 1999-2002 (Volume 1)

VEM

Onde estás? Quando vais regressar?
Os meus dedos querem o teu corpo tocar
E cheirar a tua essência de âmbar e mel.

Vens pela penumbra, com o tecto luar
Ofereces-me doce para te beijar
Cada centímetro da tua alva pele

A tua irmã, a Noite, é tua guardiã
Que te acorda no romper da manhã
Deixando-me só, nu e adormecido
Assim encontrado e logo perdido

Até ao dia acabar e vier o cheiro a maçã
Que fica preso nos lençóis até ao Amanhã
Fico eu a navegar sem nenhum sentido
Vem! Volta se para ti sou querido

ESTRELA 

Estrela adormecida aqui ao meu lado
Brilha neste meu coração pesado
A quem tu deste tamanha leveza.

Dá-me o teu corpo de neve caiado
O teu rosto de luz enfeitado 
Para apagar de vez a minha tristeza

Antes de ti, meu coração não amou
Vivia, mas vivo não estava
Até que o teu amor lhe mostrou
A luz de que ele nescessitava

É por ti que hoje sou como sou
Vulcão expelindo a doce lava
Na minha vida tudo mudou
E apenas uma estrela bastava.


SECRETAMENTE

Amiga, esposa, amante, segredo?
Só eu sei quem tu és para mim:
És a cura para qualquer medo

Enquanto a cidade dorme por fim,
Fugimos para o nosso abrigo ledo,
Entramos pelo secreto jardim.

Amamo-nos assim tão secretamente
E mais ninguém sabes que somos nós
Somos seres abertos de corpo e mente
Que a noite embala e nos deixa a sós.

Que as estrelas sejam uma corrente
Que nos protege e vela sobre nós.
Amar-nos-emos assim secretamente,
E a brisa espalhará o riso da nossa voz.

A VIDA

Quem me dera que a Vida fosse cinema
Que a Vida fosse bela como um poema, 
Que tudo corresse como eu quisesse!

Na minha vida, há tanta tristeza...
Atrás do Sonho, há tanta dureza...
Aquilo que eu queria, não acontece!

Tentei nos meus sonhos me refugiar,
Mas só de Sonho, não vive ninguém.
A doce Vida é fria e dura também
E nada posso fazer para a evitar.

Resta-me pela tristeza atravessar, 
Guardar na minh' alma todo o bem.
Afinal, se calhar a Dor também
Faz com que seja tão bom sonhar!

PAISAGEM 

Campos verdes a perder de vista!
Céu azul para além do horizonte!
Coisas belas a minha alma avista!

Planícies verdes, alta serra!
Água de lagos e água de monte
Trazem riqueza a esta terra.

Como passa depressa esta paisagem
Diante dos meus olhos viajantes.
Comboio louco em linhas errantes
Traz para mim tão bela imagem.

É tudo tão rápido, parece miragem
A visão destes campos verdejantes.
Que paisagens tão radiantes
Se me estendem nesta longa viagem.

QUERO 

Quero ser o luar no teu rosto
A entrar sereno pela janela
Numa noite quente de Agosto.

Quero beijar a tua pele
Ter os meus dedos a navegar nela
O meu nariz cheirando o teu mel.

Ser um beijo pousado na tua boca,
Aconchegar a ternura do teu seio, 
Amar-te sem medos nem receio,
Gritar até a minha voz ficar rouca.

Quero dar-me à paixão louca,
Quero um amor livre, sem freio!
Enfim, és tudo o que eu anseio
E toda a ansiedade para mim é pouca.


sábado, 10 de agosto de 2013

Pontos de Vista 2 (ou Um Autocarro Chamado Desejo)

Não, hoje não vou pensar em sexo. O que é demais, enjoa, andar a comer gajas pode ser bom para o ego e para o currículo, fazer-me sentir atraente e macho, mas ao fim e ao cabo, permanece esta sensação que ando a colar os cacos da minha existência com cuspo. Vou antes pensar noutra coisa, no próximo jogo do Benfica, no próximo CD que vou comprar, nas camisas que eu tenho de passar a ferro, em comprar comida para o hamster, na situação política do Médio Oriente, quem vai ser o próximo expulso da Casa dos Segredos. Tudo menos sexo.

Detesto quando o autocarro vem apinhado cheio de gente, com velhas mais enrugadas que passas de uva a grunhir, tipos barrigudos e sebosos a soprarem-me no pescoço, putos a berrar por isto e aquilo, os encontrões, as paragens bruscas e sei lá mais o quê. Felizmente que hoje não está muito cheio, dá para eu ir sentadinha, e que bem que me sabe, apesar de me fazer pensar que já me ando a cansar como uma velha.

Raios parta a ladeira. Mas quem é que se lembrou de erguer um cidade cheia de subidas e descidas. Para quê andar de montanha russa quando se vive em Coimbra? Basta apanhar um autocarro.

Quando chegar a casa, tenho que rapar as pernas. Malditos pêlos que crescem como ervas daninhas.

Será que a sopa de anteontem ainda está boa? Não me apetece fazer nada para o jantar. Tudo bem que eu até sei cozinhar algumas coisas e não sou daqueles que compram sempre comida feitam, mas hoje não estou com pachorra nenhuma para tachos. Se a sopa estiver azeda, faço umas tostas mistas e tá a andar.

Pelos menos, o meu cabelo está bem hoje. Gosto deste tom de coloração, É louro o suficiente para me dar um visual novo mas suficientemente acastanhado para que não passe por loura bimba. Na próxima vez que for ao hiper, tenho que comprar outra embalagem.

Aquela fulana que vi há dias no Insónias tinha cá umas mamas...Merda, lá estou eu a pensar nestas porrar. Eu até nem gosto de mulheres com grandes mamas. Bem basta daquela vez que a Daniela, que tinha uns grandes airbags, quase me sufocava com o peito quando se deitou em cima de mim.

Qual é o mal de estar sozinha? Era melhor andar com um traste qualquer só por que sim, se calhar! Só poque não tenho ninguém há oito meses, não me vou transformar numa velhota solteirona com duas dúzias de gatos. Ainda só tenho 28 anos, tenho muito tempo. E mesmo que não encontre mais nenhum tipo decente, hei de ser feliz à minha maneira.

Pronto, agora que reparei naquela ali ao lado, não consigo deixar de a observar. Mas pronto, não tem mal nenhum se for discreto. Está sentada, mas parece-me bastante bem feitinha. E sem ser demasiado vistosa.

Agora que reparo, aquele ali ao lado é muito giro. Gosto do cabelo dele assim meio despenteado, tem ombros largos e olhos escuros. Sim senhor. Se calhar é daqueles que têm as gajas que quer e não quer, mas se é, pelo menos não parece assim muito emproado.

Ela agora virou a cara para mim. Bolas, é mesmo gira. Que olhos, que boca. Decididamente é daquelas que são para manter. Pelo menos, do tipo que eu quereria que fosse minha namorada, se eu estivesse virado para isso.

E se ele sentasse ao pé de mim e metesse conversa?

"Olá, o meu nome é Vítor, e o teu?"

"Chamo-me Laura. Gosto de filmes a preto e branco, livros do José Luís Peixoto, pintura abstracta, flores secas, comida chinesa, adoro Tindersticks e Nouvelle Vague. Tenho um canário."

"Eu tenho um hamster. Gosto de hóquei em patins, snooker, filmes do Tarantino, frango assado, pipocas, pintura abstracta, Radiohead e Sigur Rós."

"Não gosto de homens peludos, é só pelos de lavatório. Gosto de homens sérios e trabalhadores, mas com sentido de humor."

"Gosto de mulheres atenciosas mas que não se detêm em pormenores e pormenorzinhos, que gostem de sair e conversar. Divertidas mas que saibam ser sérias quando é preciso."

"No fundo, só quero alguém com quem eu gosto de estar, mesmo sem fazer nada."

"No fundo, só preciso, como toda a gente, que alguém esteja ao meu lado."

"És tu, és tu quem eu procuro!"

"Se não há ninguém que te ame, posso ser eu?"

"Dá-me a tua mão, meu amor!"

"Abraça-me, my love!"

Paragem. Rua António José de Almeida.

Bem, saio aqui. Decididamente, tenho de deixar de pensar em gajas.

Que pena, ele está a ir-se embora. Bem, a vida continua dentro de momentos. 



  

domingo, 2 de junho de 2013

Respirar debaixo de água

Eu sei que é difícil, talvez até mesmo doloroso. Mas aceita-o fazer, nem que seja à laia do desafio, para tentar superar os teus limites, que eu farei o mesmo. 

Procura esquecer-me, o meu rosto, o meu nome, o meu toque, o meu cheiro, o nosso passado. Se não conseguires apagar-me da tua memória, guarda-me num canto recôndito dela, como um frasco de pickles perdido numa prateleira da dispensa. Resiste à tentação de me procurares, à sedução da imagem daquilo que tudo poderia ter sido, ao ferrão da solidão e ao receio de que nunca serás mais feliz. 

Repete para ti, as vezes que forem precisas, que não há mais volta a dar, que já tentámos tudo o que devíamos ter tentado, que insistir em ficarmos juntos é correr atrás do engano. Chora se for preciso, insulta-me e maldiz-me se isso te fizer sentir melhor. Podes dizer que sou insensível e cruel, que eu é que me estou a enganar, que estou a virar as costas ao maior amor da minha vida. Tudo o que for necessário para mudares de rumo. Ao contrário do Monopólio, não ganhamos nada por voltar à casa de partida.

Entende que se continuarmos assim, tudo o que tivemos de doce e belo irá se amargar na frustração da nossa teimosia e destruir as boas memórias. O melhor que pudemos fazer para salvar a nossa história é conservá-la muito bem, para que possa continuar a saber bem recordá-la.

Vamos redireccionar toda a energia que gastámos a chocar constantemente contra este muro de desilusões e utilizá-la para alcançarmos outras vistas, acreditando que no fim de tudo, de toda a dor  e dificuldade, será mais fácil caminhar numa vida onde o outro já não faz parte e onde as saudades, daquilo que queríamos que fôssemos (afinal diferente daquilo que nós éramos).

Pode ser então que caminhar no escuro não seja assustador, respirar debaixo de água não agrida os  pulmões,  pensar em nós não magoe o coração. Pelo menos, acredita que vale a pena tentar, até porque sempre ouvimos dizer que para trás não é caminho. 


           

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Futuro Inadiável

- Ainda estás em pé?
- Sim, não tinha sono, fiquei a ver televisão. Voltaste a trabalhar até tarde?
- Fiquei. Só quero ir dormir.
- Tudo bem. Eu também vou.

Agora faz todo o sentido. Afinal notava-se tão bem, a cara dela não enganava, como a amiga de ambos afirmou. Ele é que nunca tinha reparado, alienado pela sequencial rotina quotidiana que se comprazia em perpetuar, partindo do princípio que ela também fazia o mesmo. Há quanto tempo teria ela deixado de afinar pelo mesmo diapasão e começado a marchar por outros compassos? Há quanto tempo é que ela tem outro homem na sua vida? E porque é que ao descobrir isso, ele não consegue sentir raiva ou despeito, apenas a desilusão de quem viu as suas ilusões caídas por terra. E talvez a tristeza de algo que terminou. Ou de não mais ser ele o homem que lhe faz povoar aquelas sensações. Será que alguma vez o foi?

- A Ana está toda esplendorosa e tudo graças a ti. Nem sei como estando vocês casados há tanto tempo, conseguem ainda ter tanta paixão na vossa relação?
- Achas?
- A cara dela não engana ninguém. É a cara de uma mulher que tem paixão e bom sexo na sua vida.

Ele matutou durante longo tempo as palavras da amiga Bárbara, ditas durante um jantar entre casais amigos na casa dela. Paixão? Bom sexo? Mas se eles mal tinham qualquer contacto íntimo há vários meses, senão há mais de um ano...Foi então que pela primeira vez em sabe-se lá quanto tempo, ele olhou para ela com olhos de ver e descobriu que algo tinha mudado nela. Não sabia descrever o que seria mas era bastante nítido no rosto dela. Mesmo comedida e discreta, como sempre, havia algo diferente no olhar, no sorriso, até a pele parecia mais resplandecente e fresca.
À medida que ia reflectindo, ia descobrindo os sinais que ele tinha ignorado e que eram tão óbvios. Há coisa de três meses, ela chegava frequentemente mais tarde a casa, por vezes depois da hora do jantar, desculpando-se vagamente com o seu trabalho e encontros com amigas. Era habitual ela também chegar algo despenteada, com a roupa desalinhada. Até reparou em algumas marcas nos braços, nas costas e nas coxas, como se alguém a tivesse agarrado com força. Afinal, Bárbara tinha razão. A cara dela não enganava ninguém. Aliás ela sempre fora tão transparente. Bastaria ter reparado um pouco mais atentamente. 

Como sempre, os dois deitam-se na cama de costas voltadas um para o outro, colocando uma distância em que os movimentos de um não importunem o outro. Durante tempo, ele sentiu segurança e até conforto nisso. Quem é que precisa de dormir sempre abraçado a alguém? Era frequente que sempre que um se atrevesse a fazer alguma meiguice, o outro repelisse. Estou de rastos, não me apetece. Já era assim há tanto tempo. Milhentas perguntas lhe percorrem o pensamento. Quem é esse outro homem, o que fazem eles os dois, onde, quando. E porquê esse outro e não o homem com quem ela casou. 

Talvez porque, mais do que ele gostaria de admitir, sempre foram um para o outro mais uns sócios de uma empresa do que amantes e amados. Eram ambos pessoas, racionais, lógicas, pouco dadas a sentimentos de arrebatamento e gestos vistosos. Apreciavam a discrição, as rotinas bem delineadas, as sopas e o descanso. Havia amizade, entendimento, afecto, até mesmo amor fraterno e mais não era preciso. Que diabo, eles até eram atraentes aos olhos de um e de outro, e o sexo entre ambos podia não ser estonteante mas era bem satisfatório, pelo menos ao princípio. Não se costuma dizer que a paixão é uma sensação demasiado fugaz e volátil para nela construir algo sólido? Só que na verdade sempre faltou algo indizível que distinguisse o seu casamento de uma empresa de actividades conjugais. Mas continuaram a insistir, porque eram assim que eles eram, porque detestavam desistir dos seus planos, porque achavam natural que assim fosse. E depois, por preguiça, por comodismo, por medo do imprevisível da mudança. Até que ela encontrou um novo mundo de sensações nos braços de outro homem e ele ficou rendido à evidência de que já não haveria volta a dar.

Sentado na cama, ele observa-a, adormecida, talvez encontrando em sonhos aquele a quem se entrega como ela nunca se entregou a ele. Matutando, mais um pouco, descobre que houve alturas em que ela o encarou, quase desafiante, a pedir que ele reparasse na mudança do seu rosto. A pedir talvez mesmo que a sua infidelidade fosse descoberta, que ele ficasse furioso, que fosse prestar contas ao outro, que ele se importasse. E agora que ele sabe, não se capaz de nada mais do que ficar imóvel, encadeado com o brilho da revelação, paralisado pelo medo de um futuro inadiável que ele preferiria ainda assim que fosse antes apagado e enfadonho do que incerto e solitário. Mas então, quase sem reconhecer a sua voz, ele acorda-a sacudindo-lhe um ombro e diz:

- Ana?
- O que foi?
- Desculpa não ter reparado antes.

 

terça-feira, 30 de abril de 2013

Passo de Gigante

Querida Ju:

Se eu pudesse reescrever a nossa história, só mudaria o início. Teríamos conhecido em Portugal, numa tarde de Sábado banhada pelo sol, onde descobrias pela primeira vez as maravilhas do meu país. Estarias a mirar o belíssimo azul do céu português e a indagar se seria o mesmo tom do céu que conhecias dos teus anos de menina no Brasil. Ouvir-se-ia o bramido do mar ou o torpor do Tejo. Já eu iria a passear sem destino, perdido como sempre nos meus pensamentos. Mas fosse como fosse, haveria de reparar assim de repente em ti e iria meter conversa, olá o meu nome é Nelson. Ao que responderias, abandonado a tua timidez habitual e adoptando a pose descontraída de uma actriz numa cena de telenovela da Rede Globo, muito prazer, me chamo Juliana, que lindo dia esse aqui em Portugal.
Sim, eu sei, que cena mais foleira, mais brega. Nem nos livros da Danielle Steel que a Mónica lia na adolescência. Quem sempre teve jeito para a escrita era o Ricardo. Já eu, que sempre fui mais virado para a ciência, quando me dá para o lirismo só me saem pirosices.

Mas seja como for, achei tão pouco romântico o nosso primeiro encontro. Apesar de ser uma cidade bonita, Oslo não inspira encontros apaixonados como Lisboa, Paris, Roma, Praga ou até Londres. Ainda para mais num dia frio de Abril ainda com tanto resquício invernoso, num bar apinhado de gente onde fomos apresentados por amigos comuns que achavam que só por falarmos a mesma língua, iria ser reinventada a pólvora. Por acaso, até acabou por resultar mas levou o seu tempo até vermos um no outro um potencial amante. Aos poucos fui percebendo que o que eu julgava ser o teu excesso de timidez era apenas o teu jeito introvertido de ser, já que não és de conviver só por conviver e preferes uma interacção mais selectiva, de um para um, a moveres-te no meio de um grande grupo.
Eu também sou um bocado assim, só perdi os meus modos de bicho de mato nos meus anos universitários, onde, pela primeira vez longe do lar parental, investi a sério em fazer amizades e em tornar-me um ser mais sociável. Foi também aí que descobri que dispunha de encantos masculinos que não escapavam os sagazes olhares femininos. A minha iniciação amorosa e sexual trouxe-me algumas desilusões e deixou-me baralhado, mas ajudou-me a descobrir o meu potencial de sedutor. Verificando que eu não era nada feio e deixando de ser parvo, fui jogando as cartas que tinha no jogo da sedução. Durante anos a fio, foi isso que me bastou,  a excitação do jogo, o lançar dos dados, o prazer das vitórias e o desportivismo das derrotas. Se eu fazia planos que envolvesse amor constante e uma relação sólida, era apenas em certos recantos da minha mente onde me permitia a sonhos distantes, quase abstractos. Sonhos que só ganhariam consistência e solidez quando tivesse a mente e o coração abertos para tal. Mas que sempre existiram.

Quando cheguei à Noruega, ainda julgava esses sonhos distantes e difusos e a minha ideia de relacionamentos era dar uso ao meu charme de sul-europeu e animar umas quantas nórdicas. Até porque tinha o coração ainda dorido pela perda da minha mãe. Foi então que naquele bar apinhado, fomos apresentados e nem a tua introversão te impediu de me presenteares com uns sorrisos nem a minha cabeçudice me impediu de estar atento ao teu encanto subtil. Meses mais tardes depois, com mais alguns encontros em grupo e depois alguns a dois, o que me parecia ténue começou a tornar-se nítido. E apercebi-me que afinal estava preparado para receber aquilo que estavas disposta a dar-me, com vontade de te retribuir com juros. Os desejos que acalentava em mim já não eram os mesmos, já não queria conquistar várias mulheres, havia uma mulher que queria conquistar várias vezes. E queria ser o homem que pudesse ser o teu rochedo e o teu repouso de guerreira, onde pudesses despir as tuas defesas e entregares-te ao conforto interior que tanto te tinha faltado na tua vida.
Claro que nem tudo foi rosas, era a primeira relação amorosa séria para ambos e por vezes era como se caminhássemos por um campo minado, com medo dos obstáculos e dos inevitáveis tédios e desilusões mútuas. Eles vieram e foram, mas lá soubemos escapar minimamente ilesos. Nos piores momentos, não houve discussões, desconfianças e aborrecimentos que me impedissem de me esquecer por muito tempo os motivos porque gosto de ti. Ou para gostar de ti mesmo sem motivo. Por isso, se um início mais idílico para a nossa história é a única coisa que gostaria de reescrever, já é muito bom. Até porque os arrependimentos são uma carga demasiado pesada.

E eis-nos chegados a este momento, onde acabo de ter dar um anel e falamos em casamento. É mais um passo de gigante e convém não menorizar. É fácil dizer que um papel passado não muda nada, mas nem sempre é assim. Conheço casos de casais felizes em que a oficialização despoletou sensações, por vezes inconscientes, de propriedade e possessão. Nem toda a certeza e racionalidade do mundo por vezes nos poderá valer quando nos tropeçarmos em mais lombas no caminho. Mas até agora, não me importo dos trambolhões que dei contigo e que dei por ti. Por isso, espero que este papel seja apenas uma das muitas páginas ainda por escrever.

Tchi amo,
Nelson   




quinta-feira, 28 de março de 2013

5%


Se me queres ensinar a ser optimista, confiante e equilibrado como tu, primeiro admite que ninguém consegue ser isso tudo a 100%, quando muito 95%.

Depois mostra-me um pouco dos teus 5%:
- que também tu duvidas de ti próprio quando aparentemente não tens nenhuma razão para tal.
- que também os insultos te afectam e que os elogios são difíceis de acreditar.
- que também tu ficas irritado ou frustrado por motivos irrisórios.
- que também tu dizes palavras erradas, deixas cair coisas, dás passos em falso e escorregas em cascas de banana.

Depois mostra-me que apesar disso tudo, não te envergonhas desses teus 5%.

Só aí é que vou aprender contigo quando me dizes para não me ir abaixo com paus, pedras e más palavras. E se cair, vou aprender contigo a sacudir o pó das calças, levantar-me de novo e regressar a uma fabulosa percentagem de optimismo e autoconfiança. 

quinta-feira, 14 de março de 2013

Parabéns

Hoje faço trinta e seis anos. 

Esta manhã olhei-me ao espelho e senti o peso dos anos, como se em cinco anos tivesse envelhecido dez. Logo eu que durante tanto tempo dei a impressão de ser mais novo que era. Lembras-te de quando nos conhecemos, ficaste espantada ao descobrir que eu era um ano mais velho que tu? 
Agora olho para mim, vejo que o tom dos meus olhos está um pouco mais baço, que o meu rosto é um cruzamento de rugas de expressão, que a minha barriga, outrora bem lisa, está cada vez mais proeminente. Pelo menos, ainda tenho bastante cabelo e são ainda discretas as entradas da calvície, mas suponho que seja uma questão de tempo até começar a ver diariamente uma grande quantidade de cabelos que ficam na escova. 
Nunca fui um homem muito bonito mas o que sempre me faltou em beleza clássica, eu conseguia compensar com charme atrevido e uma lábia apurada. Por algum motivo escolheste casar comigo quando tinhas pretendentes mais garbosos. Hoje em dia duvido seriamente que, com ou sem uma personalidade fabulosa, seja um homem com quem uma mulher imagine uma noite de paixão tórrida. Não que isso me importe, pois a única mulher a quem eu ainda quero inspirar desejo és tu.
Tu raramente desabafas sobre esse assunto, mas sei que também a ti o peso da idade às vezes te martiriza. Reparo na tua expressão desconsolado quando te demoras ao espelho buscando defeitos, alguns visíveis, outros que só tu reconheces. Na tua relutância em me ofereceres a visão da tua nudez. Nos teus suspiros surdos a gabar a fortuna daquelas que têm a sorte e/ou o dinheiro que impedem que a idade não mate o viço dos seus corpos. No teu ar de dúvida quando eu te digo que estás longe de estar danificada por todas as transformações no teu corpo, sobretudo desde que deste à luz a Maria.

É verdade, a idade não perdoa, o tempo não pára, aos poucos vamos perdendo encantos e capacidades, e isso é mesmo lixado como o caraças. Sobretudo porque dá aquela ideia que se vai perdendo mais do que se ganha. Ainda para mais agora que os tempos estão difíceis e o raio da crise tira a paciência a qualquer um. Sim, o meu negócio até não vai nada mal, mas tu bem sabes toda a ginástica financeira e anímica que tenho executado para que não seja engolido pelas malhas da crise e para manter a nossa vida no mais frugal dos confortos. Tal como tens suado as estopinhas no teu trabalho sem a certeza se a remota estabilidade que existe hoje não se desvanecerá amanhã. Depois de tudo isso, ainda existe a Maria, a quem nunca negamos a atenção que ela necessita e merece. Posto isto, são tantos os dias em que caímos redondos na cama sem vontade para algo mais. E de tempos em tempos, em vez de um casamento parece que temos uma empresa de actividades financeiras e puericulturais. 

Mas quando esta noite tiveste energia para me procurar na cama e me contaminaste com essa vontade de nos unirmos, foi como por breves momentos, tudo fosse mais leve e suportável. Não foi uma maratona de prazer alucinante como aquelas em que nos aventurávamos antigamente, não foi nada extraordinário mas que foi muito bom ter acontecido. Não foi por eu fazer anos, não foi por dever conjugal, não foi para enganar o fardo da rotina. Obrigado pelo teu presente, que me fez recordar tanta coisa esquecida e acordar tanta coisa adormecida.
Hoje faço anos mas tu é que mereces os parabéns.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Motivos para Sonhar

Sonhar não é negar a realidade. É sentir que a vida é mais do que aquilo que podemos ver e que a lógica pode explicar. Claro que não se pode viver sempre com os pés fora do chão mas qual é a graça de viver uma vida onde nunca se olha para o alto, para além das nuvens e das coisas visíveis? Diria mesmo que perder a capacidade de sonhar é deixar de viver. 

Claro que nem todos os sonhos são possíveis. É com alguma pena minha que sei que nunca irei imitar o voo das aves, pois não tenho asas para bater e descolar do chão sempre que me apetecesse. Nunca irei  teletransportar-me à velocidade do pensamento para onde quer que eu queira ir. Nunca terei a capacidade de me tornar invisível, de levantar camiões, de ler os pensamentos dos outros ou de prever o futuro.
Mas a maioria dos sonhos são possíveis e alguns deles estão à distância do nosso esforço e perseverança, de pequenos projectos a grandes feitos. Coisas que imaginámos e que construímos aos poucos até se tornarem coisas bem reais. 
Mas existem dois tipos de sonhos que são mais saborosos. Aqueles que surgem na vida inesperadamente, por vezes até sem nos termos dado conta que os tínhamos sonhado e que nos levam a lugares inimaginados, geograficamente e/ou espiritualmente. E aqueles que sempre nos pareceram tão distantes e inacessíveis e que por fim se concretizam, para nos relembrar que vale sempre a pena sonhar.

Durante tantos anos que sonhava um dia em ver as palavras que escrevia em cadernos ou em ficheiros de Word ganharem forma nas folhas de um livro. E agora que este sonho é agora matéria, palavras, folha, papel, capa, livro, ainda me parece tão surreal, como se eu estivesse ainda para acordar e encarar a luz de um novo dia. Mas aos poucos, vou-me apercebendo que estas palavras que durante tanto tempo foram só minhas, pertencem agora a todos que as lerem. E agora sonho que elas irão rumar por caminhos que nunca percorrerei e que talvez durem muito para além da minha vida.

É muito fácil procurarmos refúgio na desilusão, rendermo-nos ao medo, sentirmos que não merecemos mais do que aquilo que temos. Tantas vezes que me senti assim! Mas eis que um sonho meu se tornou realidade como outros que anteriormente acalentei. E descubro novamente todos os motivos pelos quais eu sento-me na pedra filosofal de Gedeão e deixo que a minha vida seja comandada pelo sonho: para saborear os sonhos que concretizam, para sorrir com aqueles que são impossíveis mas que não se perde nada em efabular, para seguir em frente com aqueles que estão a um relativamente fácil alcance. Ou para pura e simplesmente sentir-me vivo.




sábado, 16 de fevereiro de 2013

Plano de Navegação

Mónica

Depois de mais de um ano e meio  a fazer de amante misterioso, ainda custa-me um pouco a acreditar que passámos de relação essencialmente casual a relação indubitavelmente oficial, com direito a almoços de família, fotografias ternurentas no Facebook e saídas em público, apresentando-nos como casal feliz e apaixonado. E agora?

Agora, como tu disseste, vamos com calma. O futuro é uma longa e sinuosa estrada onde é fácil nos perdermos, mesmo quando elaboramos o melhor plano de navegação. Por isso, tal como o fizemos sob o manto do semi-secretismo, continuamos a gerir o melhor que podemos os momentos que passamos juntos e aqueles que passamos afastados. Tu continuas no teu trabalho enfiada em aviões que aterram aqui e ali e eu continuo a apreciar os momentos de saudável solidão onde aproveito para renovar energias para a minha vida quotidiana, como aprendi a fazer desde menino e moço. Assim como, desde que te conheço, também vou recorrendo a essa minha apetência para a introspecção para expiar as minhas ânsias de te reencontrar.

Desde que oficializámos a relação, lá vou levando com as inevitáveis perguntas mais ou menos veladas sobre casamento, filhos, se vais deixar o teu trabalho para ficares a tempo inteiro em Portugal, se a distância vai afectar o relacionamento. A tudo isto vou respondendo de modo vago: talvez, não sei, quem sabe, ainda é cedo, logo se vê. Por vezes até fico um pouco irritado, a pensar que é um assunto que só a nós dois devia dizer respeito e que nem todas as relações felizes têm que passar imperativamente pelo casamento ou até pela coabitação. Mas depois percebo que é natural que as pessoas que me rodeiam queiram saber essas coisas e que até eu próprio já quis saber concretamente dos planos dos meus casais amigos.

Por enquanto, tal como não se mexe numa equipa ganhadora, também acho que se o que temos não está a funcionar mal, não precisamos de mudar a táctica. Já foi bastante importante para mim teres tido a coragem de arriscar a dar um passo em frente e corresponderes ao meu amor. Creio que tal como eu, já deves ter sentido que a emocionante excitação de um relacionamento secreto não se perdeu ao se expor à clara luz do dia. Pelo contrário, estar contigo continua a ser um desejo intenso e um matiz de felicidade que nunca pensei que pudesse experimentar e que sinto estar longe de escassear. E cada vez que te tenho nos meu braços, chego à conclusão que é por sabermos apreciar os nossos momentos distantes um do outro que conseguimos aperceber do valor real de estarmos juntos. 

O que estiver para vir e o que houver para mudar são ainda caminhos por percorrer. E mesmo se um dia a vida nos obrigar a tomar direcções opostas, sei que os passos que demos juntos levaram-nos para bem mais longe do que julgávamos ser possível. Perdem-se alguns mistérios, surgem outros. 

Loving you,

Salvador





quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Miss Saldanha

Já passaram três meses. Não tem sido difícil como eu pensava que ia ser. Entre toda a concentração exigida pelo meu emprego e a descoberta de um novo país onde decidi construir uma vida, ou simplesmente ao pensar em milhentas outras coisas, tenho conseguido. Mas por vezes, ainda me lembro daquela noite e de novo surge aquele alvoroço a atormentar-me. De novo, uns cabelos negros estendidos na cama, uns olhos castanhos ensonados, uma curva de peito a adivinhar-se sob o lençol.

Sabia que a minha vida teria de ser edificada noutras paragens uma vez que as oportunidades eram raras ou nenhumas em Portugal. Não haveria saudades da família e do país que me viu nascer que me impedissem de lutar um rumo mais certo, a trabalhar na minha área. Nem pensei duas vezes assim que soube que uma empresa andava a recrutar profissionais da área de saúde para o Reino Unido. Queria tanto agarrar a oportunidade que todos os nervos que me fervilhavam durante a espera ficaram à porta assim que transpus a sala de entrevistas. Seguiram-se dias de ansiedade, que chegou a ser quase frenética, à espera da resposta. E por fim, o bilhete dourado em forma de e-mail. E com ele, a azáfama da preparação, garantir que estava tudo nos conformes, fazer as malas, ultimar as despedidas.

Já tinha a minha cabeça praticamente a sobrevoar o Canal da Mancha rumo à velha Albion quando saí para uma última incursão na noite lisboeta com os amigos no meu último Sábado em Portugal. Mas assim que a vi, fui obrigado a uma escala imprevista. Sem dar por isso, um cruzar de olhares deu lugar a uma conversa, que deu lugar a uma slowdance, que deu lugar a um beijo, que deu lugar a uma noite no quarto dela, algures no Saldanha. Eu nunca fui de one-night-stands mas o feitiço dela era tal que a resistência era inútil e eu mergulhei de cabeça. Já fazia tanto tempo que não me sabia tão bem sentir um corpo de mulher. E numa só noite, fomos tão longe. 

Mas a manhã de Domingo devolveu-me à superfície e a realidade surgiu dura e fulminante. Tanto para mim como para ela, uma vez que eu tinha-lhe contado que estava de partida. As despedidas foram breves e desajeitadas, sem que nenhum de nós fosse capaz de dizer o que ficaria por ser dito. E quando finalmente embarquei no avião, só conseguia pensar que as memórias e as saudades de Portugal que eu tinha arrumado tão cuidadosamente no coração estavam agora a abarrotar, prontas a arrombar as trancas a qualquer momento. Amaldiçoei o timing destes golpes de destino que de vez em quando viram as nossas vidas do avesso. Mas como não havia nada a fazer, não tive escolha senão seguir em frente.

Já passaram três meses e apesar de tudo, não tem sido muito difícil. Apesar de todos os esforços e exigência, gosto do que faço, gosto deste recanto de Inglaterra onde estou, gosto de saber que estou por fim a germinar uma vida mais parecida com a dos meus sonhos. E tenho conseguido não pensar muito nela. Chegámos a trocar números mas nunca lhe liguei. Nem sequer a procurei no Facebook. Com a minha habitual persistência, tenho conseguido moldá-la a uma breve e doce memória. Se eu começasse a pensar no que poderia ter sido, de como talvez me tenha apaixonado à primeira vista (logo eu, tão pragmático!), acho que daria em maluco. E não me posso dar ao luxo da insanidade. 

Ainda assim, há alturas que não dá para não lembrar. Como ontem, ao sair do trabalho, quando apanhei um táxi onde tocava um tema do musical Miss Saigão no rádio. Prestei atenção à letra e não pude deixar de me rever no desespero do soldado americano que estava prestes a voltar para a América e deu por si a perder-se de amores pela bela vietnamita. Mas como as épicas histórias de amor ficam melhor em cima dos palcos do West End do que na vida real, o melhor é deixar de perguntar os porquês e deixar as memórias do olhos castanhos ensonados da minha Miss Saldanha nos céus de veludo da noite de Lisboa. E bem arrumadas num cofre dentro do meu coração.