quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Filho De Ninguém

Já faz dois meses que eu e a Marisa decidimos acrescentar benefícios à nossa amizade. Encontramo-nos pelo menos uma vez por semana. Toda esta situação tem tanto de estranho como de excitante.
Estranho porque quando me envolvo com alguém, gosto de conhecer as histórias dela, o que ela passou, dessa descoberta gradual. Mas eu conheço a Marisa desde que ela ainda usava fraldas e eu não passava de um cachopito. Crescemos juntos e temos todo um passado comum de amizade e de conhecimento. Ela sabe toda a minha história e eu sei a dela. Até dos detalhes mais íntimos como quando ela se enrolou com um italiano em Ibiza na viagem de final de curso. E embora por vezes indagasse como seria ter uma coisinha tão bela na cama, nunca me tinha atrevido a tal pois sempre prezei a amizade dela, tanto como a dos outros. E sempre gostei de ter uma miúda porreira como ela como amiga, apreciava a perspectiva feminina dela nas conversas e a sua mente aberta (infelizmente muitas gajas são mais tacanhas do que querem admitir). Era bom partilhar ter este tipo de convivência sem o sexo ser para ali chamado. Até agora.
E excitante porque agora que pisámos o risco, a experiência tem sido fascinante em todos os aspectos. E a nossa familiaridade acaba por fazer parte do jogo, antes e depois. No durante, basta despir a pele de amigos e vestir a de amantes. O sexo não é bruto nem demasiado delicado ou refinado. Acaba por ser algo bastante natural, um gozo mútuo, sem pressas nem preâmbulos. Como se o clímax não fosse o objectivo, mas sim parte do processo. É algo de adulto, esclarecido mas ao mesmo tempo, intenso e poderoso, e também divertido. A nossa relação de amizade acaba por ser uma zona de conforto, como se fosse a rede de um trapézio. Mas eu sei como no sexo por vezes é fácil perder a pega do trapézio e enfrentar o abismo.

A única coisa que me preocupa é se isto continua por mais algum tempo, ainda me meto numa alhada. Eu sei bem que as mulheres, mesmo as mais esclarecidas nestes assuntos, muitas vezes não resistem em urdir uma teia de afectos, tentando capturar o amante na armadilha do amor. Foi o que algumas tentaram e sempre fui-me safando airosamente. Se continuamos nisto, a Marisa ainda pode um dia pensar que a nossa relação pode ir ainda mais além do que nós temos, por muito que ela ache que não e aí vai ser um sarilho. Até já pensei em acabar com isto. 
Mas não o faço. Sei lá, talvez esteja a amolecer. Talvez não queira ainda abrir mão deste doce aconchego, do corpo feminino e adorável dela junto ao meu, deste engraçado jogo de sedução, desta nova descoberta.
E a verdade é que apesar de fugir às armadilhas do amor, não quer dizer que quero fugir para sempre. Nunca disse isto a ninguém mas sempre tive uma pontinha de inveja do que o Sérgio teve com a Diana. Pergunto-me como seria ter vivido um amor assim, tão intenso, sem reservas, mais forte que tudo. Não admira que tenha custado tanto ao Sérgio ter de continuar a viver sem ela.       

Mas se aspiro a esse amor, também o receio porque sei como pode ser destructivo. Por amor ao meu pai, a minha mãe deixou tudo e todos e mergulhou com ele na espiral da droga e da miséria. Amparou toda a porrada que ele lhe dava, ébrio ou sóbrio. Diz quem sabia que também tinham momentos felizes, de paixão e união total. Que não podiam viver um sem o outro, que eram super apaixonados, uma versão portuguesa e rústica do Sid Vicious e da Nancy Spugeon.
Mas não me lembro disso. Só me lembro dos gritos, do sangue e do cheiro a podridão. E o mito Sid & Nancy está demasiado romantizado: ele não a matou durante uma pedrada de heroína? Neste caso, foi a Nancy que matou o Sid. Era um ou o outro, lutando por uma navalha.
Ao menos, estou-lhe grato por ter-me deixado com a tia Luísa antes do confronto final. É o seu único acto de amor que recordo. E do meu pai não me lembro de nenhum, embora digam que sim, que gostava de mim, quando estava minimamente sóbrio.
A tia Luísa e o tio Alfredo foram mais que uns pais para mim e sempre vi o Hugo como um irmão. Graças a eles, o meu destino trágico reverteu-se e tive a oportunidade de crescer num ambiente limpo e estável. Fui e sou feliz.
No entanto, sempre me senti que não devia estar neste mundo, que fui um percalço, um filho de ninguém. Sobretudo depois da minha mãe morrer na prisão. Por isso, é que tenho esta raiva dentro de mim. Por isso, quis sempre provar o que valho, que sou capaz, que nenhum desafio é demais para mim. Por isso, é que sempre fui tão competitivo, na escola, no trabalho, até nos jogos a feijões. E nos jogos de sedução. Eram formas de ser validado. No fundo, ando sempre à procura da aprovação, embora me faça de forte e diga que não preciso de ninguém. Parece uma contradição, mas no fundo todos nós somos um poço de contradições.

O melhor que tenho a fazer, se calhar, é não pensar muito nisto. Seja feita a vossa vontade, que será, será, carpe diem e et cetera e tal. Não vale a pena andar a remoer em dúvidas, bem basta termos que sofrer com as certezas, como diz a tia Luísa. Neste momento, estou bem assim como estou, com estes novos benefícios na minha amizade com a Marisa está muito bem assim e se der mal, logo se vê. É aproveitar enquanto dura. Ou “enquanto duro”, como dizia o Vinícius de Moraes, que era cá dos meus.

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