Já
faz dois meses que eu e a Marisa decidimos acrescentar benefícios à nossa amizade. Encontramo-nos pelo menos
uma vez por semana. Toda esta situação tem tanto de estranho como de excitante.
Estranho
porque quando me envolvo com alguém, gosto de conhecer as histórias dela, o que
ela passou, dessa descoberta gradual. Mas eu conheço a Marisa desde que ela
ainda usava fraldas e eu não passava de um cachopito. Crescemos juntos e temos todo
um passado comum de amizade e de conhecimento. Ela sabe toda a minha história e
eu sei a dela. Até dos detalhes mais íntimos como quando ela se enrolou com um
italiano em Ibiza na viagem de final de curso. E embora por vezes indagasse
como seria ter uma coisinha tão bela na cama, nunca me tinha atrevido a tal
pois sempre prezei a amizade dela, tanto como a dos outros. E sempre
gostei de ter uma miúda porreira como ela como amiga, apreciava a perspectiva
feminina dela nas conversas e a sua mente aberta (infelizmente muitas gajas são
mais tacanhas do que querem admitir). Era bom partilhar ter este tipo de
convivência sem o sexo ser para ali chamado. Até agora.
E excitante
porque agora que pisámos o risco, a experiência tem sido fascinante em todos os
aspectos. E a nossa familiaridade acaba por fazer parte do jogo, antes e
depois. No durante, basta despir a pele de amigos e vestir a de amantes. O sexo
não é bruto nem demasiado delicado ou refinado. Acaba por ser algo bastante
natural, um gozo mútuo, sem pressas nem preâmbulos. Como se o clímax não fosse
o objectivo, mas sim parte do processo. É algo de adulto, esclarecido mas ao
mesmo tempo, intenso e poderoso, e também divertido. A nossa relação de amizade
acaba por ser uma zona de conforto, como se fosse a rede de um trapézio. Mas eu
sei como no sexo por vezes é fácil perder a pega do trapézio e enfrentar o
abismo.
A
única coisa que me preocupa é se isto continua por mais algum tempo, ainda me
meto numa alhada. Eu sei bem que as mulheres, mesmo as mais esclarecidas nestes
assuntos, muitas vezes não resistem em urdir uma teia de afectos, tentando
capturar o amante na armadilha do amor. Foi o que algumas tentaram e sempre
fui-me safando airosamente. Se continuamos nisto, a Marisa ainda pode um dia pensar que a nossa relação
pode ir ainda mais além do que nós temos, por muito que ela ache que não e aí
vai ser um sarilho. Até já pensei em acabar com isto.
Mas
não o faço. Sei lá, talvez esteja a amolecer. Talvez não queira ainda abrir mão
deste doce aconchego, do corpo feminino e adorável dela junto ao meu,
deste engraçado jogo de sedução, desta nova descoberta.
E a
verdade é que apesar de fugir às armadilhas do amor, não quer dizer que quero
fugir para sempre. Nunca disse isto a ninguém mas sempre tive uma pontinha de
inveja do que o Sérgio teve com a Diana. Pergunto-me como seria ter vivido um amor assim, tão
intenso, sem reservas, mais forte que tudo. Não admira que tenha custado tanto
ao Sérgio ter de continuar a viver sem ela.
Mas
se aspiro a esse amor, também o receio porque sei como pode ser destructivo.
Por amor ao meu pai, a minha mãe deixou tudo e todos e mergulhou com ele na
espiral da droga e da miséria. Amparou toda a porrada que ele lhe dava, ébrio
ou sóbrio. Diz quem sabia que também tinham momentos felizes, de paixão e união
total. Que não podiam viver um sem o outro, que eram super apaixonados, uma
versão portuguesa e rústica do Sid Vicious e da Nancy Spugeon.
Mas
não me lembro disso. Só me lembro dos gritos, do sangue e do cheiro a podridão.
E o mito Sid & Nancy está
demasiado romantizado: ele não a matou durante uma pedrada de heroína? Neste
caso, foi a Nancy que matou o Sid. Era um ou o outro, lutando por uma navalha.
Ao
menos, estou-lhe grato por ter-me deixado com a tia Luísa antes do confronto
final. É o seu único acto de amor que recordo. E do meu pai não me
lembro de nenhum, embora digam que sim, que gostava de mim, quando estava
minimamente sóbrio.
A
tia Luísa e o tio Alfredo foram mais que uns pais para mim e sempre vi o Hugo
como um irmão. Graças a eles, o meu destino trágico reverteu-se e tive a
oportunidade de crescer num ambiente limpo e estável. Fui e sou feliz.
No
entanto, sempre me senti que não devia estar neste mundo, que fui um percalço,
um filho de ninguém. Sobretudo depois da minha mãe morrer na prisão. Por isso,
é que tenho esta raiva dentro de mim. Por isso, quis sempre provar o que valho,
que sou capaz, que nenhum desafio é demais para mim. Por isso, é que sempre fui
tão competitivo, na escola, no trabalho, até nos jogos a feijões. E nos jogos
de sedução. Eram formas de ser validado. No fundo, ando sempre à procura da
aprovação, embora me faça de forte e diga que não preciso de ninguém. Parece uma
contradição, mas no fundo todos nós somos um poço de contradições.
O melhor que tenho a fazer, se calhar, é não pensar muito nisto. Seja
feita a vossa vontade, que será, será,
carpe diem e et cetera e tal. Não vale a pena andar a remoer em dúvidas, bem
basta termos que sofrer com as certezas, como diz a tia Luísa. Neste momento,
estou bem assim como estou, com estes novos benefícios na minha amizade com a Marisa está muito bem assim e se
der mal, logo se vê. É aproveitar enquanto dura. Ou “enquanto duro”, como dizia o Vinícius de Moraes, que era cá dos
meus.
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