Eis-me
aqui, parada junto ao semáforo, tamborilando os dedos no volante, à espera que
acenda a luz verde. São duas da manhã, a rua está deserta, circulo sozinha pela
cidade. Então vem-me à cabeça um cenário de transgressão: e se eu cruzasse este
sinal vermelho, protegida pela solidão desta rua? Como estamos na Lua Nova, nem
sequer a Lua seria testemunha. E aquelas estrelas que aproveitam a ausência de
luar para povilhar o seu brilho no firmamento estão longe demais para me
avistarem cá de baixo. A minha mão desce até ao manípulo das mudanças, o meu pé
já sente a urgência de carregar no acelerador.
A
luz verde acaba por surgir no preciso instante antes de ceder ao meu impulso
final. Em vez de um arranque vertiginoso sob o chiar dos pneus e o zunido do motor,
avanço sem pressa pela via, seguindo o meu caminho.
Creio
que a primeira vez que senti este desejo transgressor quando tinha cinco anos e
imaginava-me a empurrar o gato malhado da minha avó que dormia descansado num
novelo de si próprio num degrau das escadas. Quase que podia sentir as minhas
mãozinhas sobre o seu volumoso pêlo a pressioná-lo para fora do degrau, o
bichano a despertar estremunhado num grito assustado e a fugir num voo picado
escada abaixo. Depois seguiram-se outros cenários realizados na minha mente,
onde calcava um relvado junto do sinal “Não
pise a relva”, largava um grito em plena biblioteca, desatava-me a rir no
meio de uma missa, puxava o cabelo de uma antipática colega da escola, pegava
num sabonete no supermercado e atirava-o contra a prateleira das lacas para o
cabelo e por aí fora. Claro que nunca fiz nada disso. Primeiro porque
faltava-me sempre a coragem para pisar de vez o risco, e depois porque a
imaginação do acto já me dava pica suficiente, provavelmente mais do que obteria
com a realização. Quando uma vez confessei isto à minha mãe, ela concluiu que
era uma partida do meu subconsciente. Seria precisamente por eu ser tão bem
comportada que me sentia fascinada com maus comportamentos. E no fim, ela
sossegou-me, afirmando:
-
É normal ter vontade de ser mau. Fazer maldades é que já não é normal.
De
facto fui sempre uma menina bem comportada. Obedecia sem grandes protestos às
ordens dos meus pais, mantinha o meu quarto arrumado, era disciplinada e atenta
nas escolas, nunca chegava das saídas à noite depois da hora combinada, nunca
bebi álcool para além da conta, nem sequer nunca fumei um cigarro inteiro. Mas
nesse caso, também não tenho interesse nisso, detesto o cheiro a tabaco. Até
acho pior que o cheiro da ganza. E aliás, a única vez que fumei ganza foi em
Amesterdão, pelo que posso seguramente afirmar nunca fiz nada de ilegal.
Vistas
bem as coisas, a minha mãe tinha razão. Agradava-me mais a ideia de me portar
mal do que propriamente o acto. E qualquer pedrada de adrenalina que pudesse
obter se o fizesse não compensaria certamente as consequências que teria de
enfrentar.
No
entanto, agora enquanto conduzo pelas ruas desta cidade, não consigo deixar de
pensar que pisei o risco e que tenho de me aguentar à bronca. A bem dizer, não
houve nenhum risco para pisar. Foi sexo consentido entre dois adultos
oficialmente desimpedidos. Mas a frieza das palavras não se encontra no
labirinto dos sentimentos. E o que sinto é que traí o Fernando, ao voltar-me a
entregar de novo ao Gustavo.
O
Gustavo continuava igual a si próprio: sedutor, descontraído, convidativo,
aplicado. Desta vez tinha regressado a Portugal como membro da banda que
acompanha uma cantora de jazz holandesa na sua digressão europeia e claro que
não perdeu a oportunidade de voltar a ligar-me, para de mais uma vez nos
encontrarmos e matarmos saudades dos corpos um do outro, como temos feito a
espaços durante o último ano e meio. Lançava-me de novo o seu canto de sereio,
na sua voz grave e calma e mais uma vez atordoava-me os sentidos e ateava o
fogo dos meus desejos de mulher, deixando-me incapaz de dizer não.
Porém,
desta vez já havia o Fernando e o meu sim não foi tão imediato. Fui enganando
uma eventual culpa com a racionalização. Eu ainda não namoro com o Fernando.
Quando muito, andamos a ver se andamos a namorar. Se dependesse só dele, já teríamos
relação oficial mas ele tem sabido esperar que eu resolva o puzzle da minha
cabeça e que tome uma atitude, ciente que já não é para mim apenas um amigo e
certo que não tardará a sair da minha friendzone
para o nível seguinte.
Como
sempre, bastou uma porta fechada e estarmos sozinhos entre quatro paredes para
que o Gustavo e eu nos agarrássemos, como se entre nós irradiassem todas as
ondas magnéticas reconhecidas pela Física. As roupas caíram à pressa, as peles
sedentas de contacto, as bocas sequiosas do licor salival, as mãos esvoaçando
por entre as curvas e contracurvas dos músculos, os sexos roçando-se em fúria.
Como
sempre, o Gustavo foi magnífico no seu desempenho, com o seu toque a deixar
cada centímetro da mulher que sou em brasa. A responder às minhas ânsias, a
celebrar-me com beijos, a dominar-me com o seu belo corpo, a impor-me o seu
ritmo vertiginoso, a rasgar-me bem fundo, a garantir-me que os orgasmos seriam alucinantes.
Como
sempre, respondi na mesma forma, deixando-o desvairado para além da razão, sem
outro pensamento senão em possuir-me, inebriado no meu cheiro e sabor de
mulher. Provocando-o com os meus dentes cerrados e as minhas unhas afiadas.
Zunindo-o com os meus gemidos de prazer rumo ao clímax. Movendo-me para que ele
sentisse todos os estremecimentos do meu ventre. Desdobrando-me entre a amante
exigente e a amante submissa, obrigando-o a efectuar a soma das partes.
Como
sempre, ele foi perfeito, o sexo foi além de fantástico.
Só
que desta vez, assim que a euforia desapareceu no éter da noite pelo céu da Lua
Nova, e os corpos saboreavam a doce trégua depois da violência do prazer, tudo
ficou diferente. A saudade que eu tinha deste meu amante e do seu corpo foram
aniquiladas por outra saudade.
Uma
saudade que vinha agora do coração e que me levava a outro corpo, a outro
amante. A um outro amado.
-
O que tens, Luísa? – perguntou o Gustavo.
Tentei
dizer alguma coisa mas só me apetecia chorar e não consegui evitar que uma
lágrima se condensasse no meu rosto. Com a sua habitual perspicácia, percebeu
que eu não estava bem mas nada disse. Passou apenas a mão pela face,
limpando-me a lágrima. Depois pegou no trompete e, ainda nu, tocou-me um
excerto de uma música que tinha ouvido antes no concerto. Recordei a canção que
a cantora cantou no concerto.
Whisper to the moon, my heart pleads for you.
Sentei-me
na cama, desfiz o nó da garganta.
-
O Fernando ama-me.
Ele
parou de tocar e sorriu para mim.
-
O Fernando tem bom gosto.
Assim
que senti a brisa da noite, olhei para o céu sem lua, mas cheio de estrelas. De
certa maneira, creio que amei o Gustavo. Não pela atracção animal que ele me
inspirou, pelos prazeres que ele me fez descobrir, nem sequer pelo bom
entendimento que soubemos cultivar fora da insanidade carnal. Amei-o com a
ternura de alguém que foi importante para nós e que nos pintou um novo matiz da
vida. No caso dele, talvez a luz branca do luar. Mas a rotação da vida é
constante e só agora percebi que estava agora na órbita de um novo ciclo.
Peguei no meu carro e voei no reflexo celestial do alcatrão. Se eu pisei algum
risco, só tenho é que seguir em frente.
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